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A alienação fatal da Palavra do Pai - Parte I


(por Araí Daniele)

A voz dos Papas católicos

Fátima, 2008

- Pro Roma Mariana -



Crise de valores ou negação de princípios? A crise que degrada a sociedade contemporânea é geral e profunda, atinge a família, o estado e a economia. Onde não há guerras iníquas há violência e corrupção infrene. Convive-se com a imoralidade e o delito. Nunca a autoridade foi tão necessária, nunca esteve tão ausente. Jamais houve meios de controle tão eficazes, e no entanto jamais os governos estiveram tão desorientados.


No plano dos fatos essa tendência moderna a substituir a ordem natural por uma nova ordem redunda em uma calamidade: não há mais como recorrer à autoridade, nem mesmo revolucionária, para conter desordens nacionais e massacres internacionais.


Negada a origem divina da ordem e da autoridade, o poder humano não se emancipou, mas degradou-se. - Se não há Deus, tudo é permitido - Ignorando Deus, que é o Princípio transcendente do Bem, a distinção entre o bem e o mal torna-se mendaz. Eis a causa do descalabro atual.


Ora, os seres humanos devem comprender a causa da própria desordem moral para poder saná-la. Como devem entender a relação causa-efeito entre a crença em Deus e a ordem social? Porque é que ignorando o Princípio transcendente do Bem torna-se quase impossível distinguir entre o bem e o mal que concernem a vida humana? A razão está no fato que o bem de cada coisa é conexo com a sua razão de ser, com o seu fim. Ora, como pode o homem conhecer com certeza o seu bem último, desconhecendo o fim de seu existir? E se não conhece por si mesmo a razão de sua vida como pode estabelecer autonomamente um critério de bem e de mal? Para fazê-lo deverá necessariamente recorrer à Palavra de Quem o criou, como tudo mais, para um fim.

Eis que a ordem humana é ligada diretamente à Palavra revelada.


Os homens podem distinguir um bem de um mal imediato, ma diante do bem ligado ao fim da sua vida podem saber somente o que lhes foi revelado. Se, ao contrario, seguirem idéias progressistas, o que hoje pode parecer bom amanhã pode demonstrar-se deletério. Quem nega a transcendência do Bem, a existência da verdade absoluta, priva-se do também do critério essencial para distinguir entre o bem e o mal. Envereda pelo beco sem saída da confusão entre o real e o imaginário, entre o verdadeiro e o falso. A negação de Deus aplicada à vida social leva a uma forma de governo em que as leis se reduzem a experiências derivadas de opiniões e a política, como a justiça, torna-se terreno de conflitos partidários, sem fundamento nos problemas reais da gente.


Ora, os princípios que regulam o comportamento humano estão no nível da consciência. É aí que o ser humano, dotado de livre arbítrio, recebe a Verdade que o transcende ou a recusa em favor de uma visão pessoal promovida à verdade objetiva. É à partir da consciência que cada um pode seguir o caminho da ordem revelada, ou usar da própria liberdade para enveredar por outros caminhos, indiferente ao Bem.


No estado de consciência amadurece toda decisão humana, que é essencialmente uma escolha em relação ao bem e ao mal: dentro das próprias consciências se formam as normas para o bem agir; são iguais para todos, são imutáveis, ali gravadas por Deus mesmo.. Por conseguinte, a vida social está ligada duplamente às consciências. Se de um lado ela decorre dos atos suscitados pelas consciências, de outro lado ela deve ter por fim mais elevado o progresso do conhecimento e dos meios para a melhor ação das cosciências. Em suma, a vida social tem por base e por fim o desenvolvimento das consciências pessoais. A questão da formação das consciências apresenta-se como complexa mas pode ser sintetizada em duas atitudes fundamentais. Neste processo a característica essencial é a liberdade das pessoas.
O que guia as consciências no bem melhora a vida social, o que as desvia do bem leva cedo ou tarde a vida pessoal e social à desordem e à degradação. Neste sentido, o ateismo demonstra ser não só um problema religioso mas uma desordem humana cujas consequências são deletérias para a sociedade.Não são essas acaso as normas elevadas pelo Cristianismo? O fato é que a sociedade presente, defraudada da ordem cristã, se perde num labirinto de contradições em que se vão perdendo os verdadeiros valores e a razão da vida pessoal e social.

Esses valores dizem respeito ao homem, sua origem, seu estado no mundo e seu fim último. É a ordem do ser, isto é, dos princípios que regem a Lei natural, defendida pela Igreja católica, que ensina a Palavra divina como fundamento das leis humanas, como chave da salvação.

Foi na certeza desses princípios e dessa ordem que a Civilização cristã floresceu e se difundiu pela Terra. Os seus ideais são ordenados por uma hierarquia de valores que elevam o homem guiando-o ao seu fim. As idéias de bem, de belo e de veraz, projetadas na eternidade, elevam os valores terrenos e transcendem os interesses materiais e as esferas temporais: pertencem à ordem da Fé.

O homem é naturalmente teocêntrico: sua mente foi criada para a verdade que a transcende. Assim como a vista, o ouvido, e todos os sentidos, serve menos à percepção de si mesmo que à do mundo exterior, a mente perscruta o espaço à nossa volta. O centro de percepção nos é interno, mas transcendente é o que busca a nossa mente: a causa e o fim do que existe: Deus. Se a inteligência humana perde esta razão, ela se vê incapaz de circular fora de si mesma. Eis a alienação da hora presente, especialmente para os jovens, cuja crise existencial não é superável com valores de ordem material.

O dilema existencial de um jovem hoje só difere em grau dos de qualquer ser humano de qualquer tempo. Somos livres para abraçarmos a Verdade na ordem do ser, usando a chave da Palavra divina, mas também para rebelar-nos, pondo a nossa liberdade acima da Verdade. Foi o caso da rebelião original. E dela derivam todas as outras, que multiplicaram-se e reforçaram-se sob influências obscuras que visam a um antropocentrismo que rejeita a ordem divina. Eis o que é a rebelião, por trás de todas as revoluções em prol de uma nova ordem antagônica ao verdadeiro princípio da ordem e da autoridade: Deus mesmo. Consequência da tentação original, essa Revolução está para a humanidade como a rebelião está para os indivíduos. Só há dois caminhos na vida do homem e da sociedade: Cristianismo ou Revolução. De um lado a dura subida para a edificação pessoal segundo a Palavra divina; do outro a estrada larga da confusão humana.


Os dois caminhos da consciência - A ordem cristã quer o homem novo que, segundo a Escritura sagrada, é de origem rebelde, mas renasce em Jesus Cristo. A Revolução, ao contrário, instiga o rebelde com idéias progressistas, segundo as quais todo homem nasce bom mas foi corrompido pela sociedade. Este bom selvagem (Rousseau) deve assim procurar o bem na revolta social e no progresso para restabelecer o liberto primigênio, que é o velho homem do Evangelho.A Revolução mira, portanto, abater a ordem cristã, que impede a evolução do homem original. Recorre pois à clava para demolir as bases do pensamento tradicional, bastiões mentais e morais da Lei que é a chave da Civilização cristã. Poderá então apresar a Igreja e os cristãos para obrigá-los a uma reeducação segundo a utopia evolutiva.

A Cristandade, atacada no curso dos séculos e especialmente depois da Revolução francesa, foi aluída nos nossos dias por um aggiornamento clerical. Isto foi possível porque a hierarquia eclesiástica, cujo dever precípuo é preservar a Fé e defender a Cidade cristã, deixou-se seduzir pelas utopias dos modernistas aliados com os poderes terrenos. Nos anos sessenta, então, a contestação social e estudantil, na onda de uma campanha de desdém pelos princípios cristãos, gerou uma alienação entre a vida civil e a vida espiritual, entre o pensamento e a verdade, entre o homem e Deus.


Desde então, com a descristianização do mundo, avança o processo de inversão dos valores sociais, que encontram o seu lógico desenlace num próspero satanismo. A Revolução, tendo concretizado o seu plano de demolição da Cristandade, substitui os sistemas violentos por métodos culturais que apartaram o pensamento da moral. Mas os seus ideólogos ignoravam o efeito boomerang que a nova desordem na esfera religiosa acarreta para os homens: é qualquer coisa de devastador também no plano moral e mental. E 1960 é uma referência histórica para a Mensagem de Fátima, porque então a sua terceira parte seria mais clara.

De fato a transformação mais surprendente nesse período deu-se na Igreja católica, isto é, o aggiornamento conciliar que acolheu as idéias e passou a usar os termos do já condenado modernismo, por exemplo:
- O humanitarismo que, pregando a chamada civilização do amor, põe o homem no centro de tudo. A verdade estaria sempre mudando com a evolução do próprio conceito de verdade, e seria tão mutável como a idéia de bem. Mas podem as dúvidas que confundem as noções de bem e de mal conduzir ao verdadeiro amor pelos outros? É possível querer o bem sem uma clara noção de Bem e de Mal?

- O democratismo exaltado por esse humanitarismo, que, não apoiado na noção de Bem, tem como único norte a utópica evolução da consciência que, amadurecendo, se torna emancipada. O bem passaria a ser o progressso e a revolução, perseverando numa ordem democrática para a qual os princípios contam menos que opiniões. Assim, todas as questões humanas, mesmo se subordinadas às normas divinas, seriam objeto de escolhas democráticas, da preferência das maiorias.


O exemplo mais clamoroso é o do aborto, proibido pela lei de Deus, mas aprovado pelas leis democráticas de muitos países. A verdade cede assim o passo às ilusões e a moralidade às sensações sob os ditames de uma obscura vontade popular. Mas não é justamente da manipulação das vontades por poderes ocultos que o homem e a sociedade precisam libertar-se? De fato a novidade inoculada pelo modernismo no clero e depois pelo Vaticano II no povo de Deus é uma contrafação religiosa que vem agravar essa manipulação com a desculpa de resolve-la.



A questão do aborto serve de exemplo para explicar o engano. Quando surgiram processos politicos que justificavam crimes como o aborto na sociedade humana a Igreja condenou o processo. O crime em sí já é condenável. A novidade da hora presente está no engano do processo revolucionário que leva os fiéis a decidir sobre o crime, isto é a votar sobre o aborto. Ora, até mesmo votar contra o aborto, como se fosse lícito pronunciar-se sobre a Lei divina, é intrínsecamente errado. O fiel deve pois rejeitar esse democratismo fundado sobre o falso princípio de uma vontade popular que se arroga o direito de decidir da supressão da vida humana, hoje no seio materno, amanhã segundo a vantagem geral. Nesse falso princípio geral, mais que num crime particular, reside o verdadeiro mal; ele é matriz de crimes ignóbeis.

Eis a descrição de alguns dos enganos gravíssimos do modernismo, que foram condenadas pela Igreja até os anos cinquenta, mas que hoje dopam a humanidade e até o mundo católico como um ópio dos povos.


Os erros revolucionários levam os homens a alienar, com as verdades existenciais, suas próprias almas. Destes erros e de suas consequências terríveis falou Nossa Senhora de Fátima, mas a sua Mensagem não foi ouvida.


Os Papas condenaram o processo revolucionário, inclusive o modernismo, como perversos, porque, em todas as suas variações, se opõem à verdade e ao bem da humanidade, rompem a ordem dos princípios divinos acarretando toda uma série de horrores com sua intrínseca desumanidade. A abissal inimizade entre tal espírito e o catolicismo, está descrita nas palavras pronunciadas por Pio XII (disc. à ACI, 12/10/52):

"Ele encontra-se em toda parte e no meio de todos; sabe ser violento e subreptício. Nestes últimos séculos tentou operar a desagregação intelectual, moral e social da unidade no organismo misterioso de Cristo. Quiz a natureza sem a graça; a razão sem a fé; a liberdade sem a autoridade; por vezes a autoridade sem a liberdade. É um 'inimigo' que tornou-se cada vez mais concreto, com uma falta de escrúpulos que deixa ainda atônitos: Cristo sim, a Igreja não. Depois: Deus sim, Cristo não. Finalmente o grito ímpio: Deus morreu; aliás: Deus nunca existiu. Eis que a tentativa de edificar a estrutura do mundo sobre bases que Nós não hesitamos em apontar como as principais responsáveis pela ameaça que pende sobre a humanidade: uma economia sem Deus, um direito sem Deus, uma política sem Deus.


O 'inimigo' empenhou-se e empenha-se para que Cristo seja um estranho nas universidades, nas escolas, nas famílias, na administração da justiça, nas atividades legislativas, no consenso das nações, onde determina-se a paz ou a guerra. Ele está corrompendo o mundo com uma imprensa e com espetáculos, que eliminou o pudor nos jóvens e destroem o amor entre os esposos; inculca um nacionalismo que só pode conduzir à guerra".

Pio XII via, já então, este processo tão avançado ao ponto de considerar inútil "ir ao seu encontro para bloqueá-lo e impedí-lo de semear a ruína e a morte". Considerava mais urgente "vigiar, orar e operar, para que o lobo não penetrasse no redil para capturar e dispersar a rebanho". Depois da sua morte, porém, tal espírito, que é a Revolução de sempre em veste modernista, abriu as portas do Vaticano.


Este espírito de abertura para o mundo é reconhecível nos conciliares. Como? Porque estes ao contrário dos Papas, declaram que o processo revolucionário, civil e religioso, é animado por um espírito profundo e generoso que prepara a fraternidade universal.



Uma revolução clerical? Se o processo revolucionário tem em mira a extirpação da idéia de Deus na sociedade como poderia atingir o sacerdócio? Ora, não há novidade histórica nisto; quase todas as heresias e cismas surgiram justamente entre os homens do hábito. Na verdade a rebelião humana e depois a Revolução, têm por paradigma a rapina de um bem proibido e impossível: a dignidade absoluta do homem - sereis como deuses! Ora, deuses não são sujeitos ao mal. Põe-se pois a questão da causa do mal.


O espírito da Revolução exalta a dignidade humana e nega a responsabilidade do homem pelo mal inerente à sua queda. Atribue o mal a poderes que limitam o homem, portanto implícitamente a Deus, à Sua Igreja ou ao Cristianismo. O homem, liberando-se de tais vínculos, evoluiria no conhecimento do bem, no domínio do universo e do próprio destino, vencendo autonomamente o mal. Mas a Revolução para atingir a sua meta final, que é seduzir toda a terra, precisa revestir-se do aspecto de uma autoridade universal que batize o processo revolucionário. Em uma palavra precisa introduzir a rebelião no plano religioso.


Um pronunciamento clerical a favor de um direito do homem à liberdade religiosa devido à sua dignidade absoluta, que é revindicação do direito de decidir sobre os princípios que regulam a vida humana, e é assim negação implícita da decadência humana, é revolução trazida para o plano religioso; e esta avulta quando assume aspecto conciliar, do poder de magistério, como no caso do Vaticano II.


É possível reconhecer uma tão obscura e espantosa transformação no espírito religioso? São as palavras da mesma hierarquia conciliar a revelá-lo, porque não casualmente, mas regularmente, ao contrário do que ensinam os Papas, reconhecem o ideal generoso das revoluções e profunda religiosidade em Lutero e consideram os frutos nefastos da Revolução, as perseguições, genocídios, descristianização do mundo, imoralidade social, como o resultato de erros humanos normais, como acidentais e não intrínsecos ao processo revolucionário. E até acham que a revolução, pela solidariedade social promove a instauração de uma nova ordem de justiça, paz e progresso, conforme à dignidade humana: a inspiração cristã que teria sido descurada pelos católicos!


Que resultado esta revolução clerical produziu no mundo?


Ora, uma sociedade não pode subsistir com uma noção falsa da natureza, do estado atual e do fim último do seu elemento constitutivo: o homem. Um povo desviado de seus princípios vitais perde a capacidade de reconhecer e enfrentar toda problemática social, que não pode ser esclarecida pelas filosofias, incapazes de chegar às fontes da vida, mas antes pelo Verbo de Quem é vida. A sua Lei guia a vida humana e revela o desenlace da história, que é um combate acirrado entre a Verdade e o espírito rebelde. As rebeliões, crescidas e multiplicadas no mundo, dão poder à Revolução, cujo lema é o metafísico non serviam. Mas poderia esta ter alcançado tal penetração mental, subvertendo o mundo católico, sem ter atingido antes os vértices da Igreja? Eis que a decadência clerical é a mais devastadora, também na ordem temporal. Ela leva os fiéis a votar por exemplo contra o aborto, sem perceber que assim fazendo sobrepõem a soberania popular à vontade divina.
 
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