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O que querem eles?

A REVOLUÇÃO RELIGIOSA NO SEIO CATÓLICO BRASILEIRO



Para compreendermos a verdadeira Revolução que ocorreu no Brasil sob a regência colegiada da CNBB, no período que se seguiu ao Concílio Vaticano II, precisamos, primeiramente, compreender a situação do mundo católico antes do Concílio. Evidentemente, houve, principalmente desde o século XIX, um enorme combate por parte da Igreja contra o pulular de doutrinas heréticas que circundavam os meios católicos.
Gregório XVI, Pio IX e Leão XIII batalharam no século XIX contra diversas correntes de pensamento que então surgiam. Gregório XVI lutou contra o Liberalismo do Pe Felicité de Lamennais, através da Encíclica Mirari Vos, publicada em 15 de agosto de 1832; Pio IX publicava, em 8 de dezembro de 1864, a Encíclica Quanta Cura, contra o laicismo do Estado, e o Syllabus Errorum; Leão XIII condenara, através da Encíclica Libertas, a doutrina da Liberdade Religiosa.
Já no século XX, São Pio X, em 8 de setembro de 1907, publicava a Encíclica Pascendi Dominici Gregis, que condenava o Modernismo de Loisy, Tyrrel e Murri, como “síntese de todas as heresias”. Em 1910 o mesmo Papa condenava a Marc Sangnier com a sua “liberdade e igualdade na política”, através da Encíclica Notre Charge Apostolique. Pio XI, em 6 de janeiro de 1928, condenava o movimento ecumênico que negava a Unidade da Igreja e que queria promover a unificação de todos os cristãos.
Entre os precursores mais próximos do Concílio, podemos destacar o “Movimento Litúrgico”, obra de beneditinos, sobretudo de Dom Lambert Beauduin. Este movimento impulsionou o que foi chamado de ativismo litúrgico. Termos como “concelebração entre padres e fiéis” começavam a fazer parte da linguagem eclesiástica. A influência deste movimento foi ecoada aqui no Brasil principalmente pelos beneditinos do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Apareciam vocabulários inovadores nos meios “intelectuais” católicos. Segundo Julio Fleichman, no Mosteiro “havia uma Missa mais ou menos escondida, às 7 da manhã de um dos sábados de cada mês, em que o oficiante celebrava “versus populum””. [1] Pio XII trabalhou para conter estes sinais de progressismo, porém, num mundo entre guerras, a atenção de muitos pastores se dispersava e a palavra do Pontífice caia no esquecimento. Para conter os excessos do Movimento litúrgico que tomava forças, Pio XII escreveu a encíclica Mediator Dei, em 1947. Este mesmo Papa identificava, já naquela época, o surgimento de uma nova teologia. Este termo “nova teologia” foi reprovado na Alocução Quamvis inquieti, de 22 de setembro de 1946. Os seus intelectuais exigiam um retorno ao que chamavam de fontes, para “libertar os dogmas” dos elementos do pensamento aristotélico-tomista.
No que tocava às obras de apostolado católico, instituições fundadas por recomendação do Papa Pio XI (a Ação Católica por exemplo), estas começavam a se desviar dos seus objetivos iniciais. Estes movimentos foram se alinhando a um bispo com tendências esquerdistas, seu nome era Hélder Câmara.
No âmbito da Filosofia e Teologia católicas, pensadores como Jacques Maritain já se faziam ouvir. Em Roma, os jesuítas que predominavam na Comissão Bíblica Pontifícia e no Instituto Bíblico, começaram a sua obra de ralliement biblique. Idéias de protestantes como as do “teólogo” Bultmann, questionavam a autenticidade e a historicidade das Sagradas Escrituras. Porém, com a descoberta dos chamados “Documentos do Mar Morto”, a argumentação dos racionalistas caiu por terra, pois os evangelhos puderam ser datados acerca do ano 50 e não no fim do primeiro século como queriam os modernistas. Para eles, os Evangelhos teriam sido resultado de um conjunto de escritores anônimos da Comunidade, que exprimiam apenas sentimentos pessoais e não os fatos históricos reais.
O século XX, como sabemos, foi de grandes turbulências. Duas grandes guerras mundiais aconteceram, revoluções por todas as partes do mundo, cortinas de ferro e, conseqüentemente, enormes mudanças nas formas de pensar e agir das sociedades em geral. Foi o século em que mais se falou em dignidade, paz e direitos humanos. Ao mesmo tempo foi o século com o maior número de genocídios em série da História. Neste tempo de guerras, os padres e bispos, principalmente na Europa, não puderam se aplicar como antes num profundo estudo da escolástica. Diversos Seminários foram completamente destruídos pela guerra, e na Europa Oriental os exércitos vermelhos impunham o terror e perseguições à Igreja.
Neste contexto de ânsias por um mundo novo, palavras como paz, justiça social e igualdade encontravam ressonância cada vez maior. João XXIII em Mater et Magistra, 1961, já falava no dever de incluir o progresso da socialização em nossa época. Em 1962 chegava ao Brasil o fenômeno Teilhard de Chardin, um jesuíta que fazia sucesso com os livros que publicava. Chardin pregou o evolucionismo e o relativismo dentro da religião. Sobre este fenômeno escreveu Mons. Proença Sigaud, quando consultado por João XXIII sobre as decisões que deveriam ser tomadas no Concílio:
“Dos seminários e da própria Cidade Santa retornam seminaristas imbuídos das idéias revolucionárias , definem-se eles como “maritainistas” e são “discípulos de Teilhard de Chardin”, “socialistas católicos”, “evolucionistas”. É raro que um sacerdote que impugna as idéias da Revolução seja elevado à dignidade episcopal; e também é freqüente que isto ocorra a quem as promove.” [2]
No entanto ainda havia alguém no Vaticano que vigiava, o Cardeal Ottaviani. A avalanche era grande e encontrava apoio de João XXIII, mesmo assim este Cardeal publicou um Monitum, ou seja, uma advertência formal e pública que demonstrava que as obras de Teilhard de Chardin continham ambigüidades e erros doutrinários graves. O Vaticano II, todavia, segundo Dom Waldyr Calheiros, recuperou Teilhard já excluído e silenciado pela Igreja.[3]
Mas o que a maioria dos eclesiásticos queria agora era um mundo melhor e por que não, se queria-se mudar tudo, uma igreja melhor. Se queriam um novo mundo por que não almejar uma nova religião? Estes anseios de mudanças e de conciliações com a Nova Ordem Mundial que nascia, desaguaram no Concílio Vaticano II[4] e tiveram proporções mundiais, através dos seus desdobramentos. A nova religião do Concílio teria agora a sua base no culto do homem, ou seja, no Humanismo Integral de Maritain. Assim discursava Paulo VI no encerramento do Vaticano II:
“O humanismo laico e profano apareceu, finalmente, em toda a sua magnitude, desafiando o Concílio. A religião do Deus que se fez homem encontrou-se com a religião (porque tal é) do homem que se faz Deus (grifo nosso). Que aconteceu? Combate, luta, anátema? Tudo isto poderia ter-se dado, mas de fato não se deu. (...) Com efeito, um imenso amor para com os homens penetrou totalmente o Concílio. (...) Vós, humanistas do nosso tempo, que negais as verdades transcendentes, daí ao menos este louvor e reconhecei este nosso humanismo novo: também nós, e mais do que ninguém, somos cultores do homem (grifo nosso). (...) Uma corrente de interesse e de admiração saiu do Concílio sobre o mundo atual.”[5]
Instalava-se, portanto, no Vaticano, a religião do culto do homem e que solicitava o louvor dos humanistas ateus. Não existiriam mais anátemas e lutas contra as heresias. A religião do Concílio declarava-se agora “escrava da humanidade”. [6]
Diante da hierarquia, os leigos de agora em diante passariam a ter papel primordial na obra de “humanização” do Concílio:
“Por sua parte, os sagrados pastores reconheçam e tornem efetivas a dignidade e responsabilidade dos leigos na Igreja; aproveitem de bom grado o seu conselho prudente, confiem-lhes tarefas para o serviço da Igreja, e deixem-lhes liberdade e campo da ação (grifo nosso); animem-nos mesmo a empreender outras obras por iniciativa própria. Considerem atentamente, diante de Deus, com paternal afeto, as iniciativas, as propostas e os desejos manifestados pelos leigos. Enfim, os pastores hão de reconhecer respeitosamente a justa liberdade que a todos compete na sociedade terrestre.”[7]
Tínhamos diante de nós as primeiras receitas do que aqui na América Latina assumiu o nome de CEB (Comunidades Eclesiais de Base). Mas faltava uma última característica, que também fez parte destas comunidades que posteriormente surgiriam: o ecumenismo.[8] Nisso o Concílio também pensou. Uma das principais notas de visibilidade da Igreja, a unicidade, seria agora esquecida e os padres conciliares empenhar-se-iam em empreender uma Unitatis Redintegratio. Ora, o credo católico reza assim: Et UNAM sanctam catholicam et apostolicam Ecclesiam. Se a Igreja é una, que unidade o Concílio queria reintegrar?

Desdobramentos do Concílio para a América latina: Medellín, Puebla e a Teologia da Libertação

O primeiro desdobramento conciliar foi a Conferência de Medellín, que ocorreu em 1968, ali foram lançadas as bases do que chamou-se Teologia da Libertação. Nesta ocasião, Gustavo Gutierrez e Hugo Assman explicitaram suas doutrinas que se refletiam no campo da Filosofia e da Teologia. Não são poucos os que afirmam que foi Dom Eugênio de Araújo Sales, considerado hoje conservador, quem trouxe o germe da Teologia da Libertação para o Brasil. Aqui Dom Hélder Câmara regou e Leonardo Boff colheu.
Com o apostolado livre para os leigos e com a influência dos protestantes de esquerda por via ecumenismo, o campo estava aberto para as Cebs, pois o “marxismo influenciou profundamente o pensamento teológico protestante, de onde passou para os católicos, através das obras de outros autores como Karl Barth, Hromadka, Jürgen, Moltmann, entre outros, cujas doutrinas encontram ressonância em teólogos católicos como Ernest Bloch e Hans Küng.” [9] O poder na Igreja deixava de ser monárquico, passando agora a ser colegiado.[10] Quem poderia parar as Cebs? Realmente, enquanto tínhamos - pelo menos com Castelo Branco, Costa e Silva e Médici - governantes conservadores, em contrapartida passávamos a ter uma igreja às esquerdas. Os hábitos religiosos não eram mais utilizados, a não ser para enfrentar os militares, como aconteceu com os dominicanos em São Paulo. Desde o Concílio haviam parado de usar os hábitos, mas quando eram procurados pelo exército sob suspeita de estarem dando refúgio aos comunistas subversivos, o que depois se confirmou, estes os vestiam para fazerem pressão psicológica. Eram os primórdios da militância do “marxismo católico.”
O que estamos expondo aqui é que, segundo a doutrina perene da Igreja, a teologia da libertação é contrária à Revelação, pois baseia-se no que chama de realidade. Como o Evangelho não dá margem para a análise pretendida pelos teóricos da Libertação, estes recorreram ao marxismo para corroborar seus anseios. Assim vejamos o que disse um dos patriarcas desta corrente:
“Neste momento de racionalidade e objetividade, o teólogo pode se utilizar do aporte da teoria marxista (...) O que propomos não é teologia dentro do marxismo, mas marxismo (materialismo histórico) dentro da Teologia”.[11]
No entanto, marxismo e catolicismo são termos intrínsecamente opostos, por isso assim ensinou o Papa Pio XI:
“Católico e socialista são termos antitéticos. E se o socialismo, como todos os erros, tem em si algo de verdade (o que é certamente nunca negaram os Romanos Pontífices), se apóia, todavia, em uma doutrina sobre a sociedade humana- doutrina que lhe é própria -, que destoa do verdadeiro cristianismo. Socialismo religioso, socialismo cristão, são termos contraditórios. Ninguém pode ser ao mesmo tempo bom católico e verdadeiro socialista.” [12]
O termo marxismo teológico não somente é um paradoxo para o âmbito da religião, mas, igualmente, para o próprio marxismo. Os patriarcas do comunismo ateu, Marx e Engels, consideravam que a teologia, a filosofia e a ética não representavam nada de real. Todos estes elementos seriam conseqüências da emancipação imprudente da consciência em relação ao mundo, pois “o marxismo considera que os homens preocupados com o assunto da sua salvação eterna – uma salvação concebida como uma felicidade perfeita depois da morte e que consiste na gloriosa eterna convivência com Deus – estão “alienados”, e que esta alienação debilita a sua preocupação pelos assuntos deste mundo, o qual para os marxistas é o único mundo real. Neste sentido Marx fala da Religião como o “ópio do povo”.” [13]
Esta corrente teológico-revolucionária, evidentemente, não se limitou ao plano teórico, pois foi tomando corpo com a Cebs. Dom Moacir Grechi, bispo prelado do Acre e Purus, foi quem definiu as cebs como a parte concreta da Teologia da Libertação. Dom Waldyr Calheiros aí entrava como o bispo que dilatou este projeto como organizador do 1º Encontro Latino-Americano das Cebs e presidente do 4º Encontro Nacional das Cebs. Para ele também a Teologia da Libertação tem a sua práxis nas Cebs.
Tudo começava a mudar. Surgia em 1970 um novo rito da Missa e novas fórmulas para os sacramentos eram impostas. Tudo isso propiciou a implementação das Cebs, pois se ainda perdurassem o latim na liturgia, o respeito pelo sagrado e as devoções populares como procissões, rosários e vias-sacras, os gritos dos “excluídos” (revolucionários) não teriam voz. Por isso os sacramentos passariam a ser ação da comunidade celebrante. As devoções do povo católico seriam substituídas por simulacros recheados de socialismo, como, por exemplo, ao invés de procissões, teríamos agora as chamadas “caminhadas da terra.” Segundo o Pe. Dr. Poradowski “os marxistas aplicaram o método, profundamente psicológico e eficaz, da graduação. Primeiro, por uma propaganda adequada (durante retiros espirituais “jornadas”, “encontros”, “congressos”, etc., e em artigos de revistas teológicas) efetuou-se uma “lavagem cerebral” de uma parte do clero, procurando eliminar a formação e a educação recebidas nos Seminários e Universidades. Depois pôde-se inocular em pequenas doses a cosmovisão marxista, e especialmente o conceito marxista de cristianismo.”[14]
Há, portanto, um verdadeiro contraste entre a Igreja Vertical, ou seja, voltada para Deus, e a igreja horizontal, voltada para o homem. Que pensar, por contraste, do sacerdote, do ministro de Deus, do pastor de almas, que raras vezes fala sobre Deus; que evita os temas “escabrosos” do pecado e da graça, do céu e do inferno, da cruz e do sacrifício; que não dedica praticamente tempo nenhum à confissão; que se desinteressa dos candentes problemas da falta de vocações sacerdotais, da multidão de pessoas que ficam sem atenção pastoral e sem sacramentos, da tremenda crise do ensino católico, etc.?[15]



[1] FL


[1]FLEICHMAN, Julio. A Crise é de Fé e é Grave. Permanência: Rio de Janeiro, 1994.
[2] Atas e Documentos do Concílio, Série I, Vol. II, parte VII, págs. 180-195.
[3] O Bispo de Volta Redonda, p. 35
[4] “Não se trata, apenas, de uma série de desastres que coincidem cronologicamente com o Concílio, nem de uma relação causa-efeito evidente a qualquer mente lúcida.É que, após o Concílio, toda novidade heretizante, toda desordem, todo relaxamento disciplinar se reclama expressamente do Concílio, que é sua réplica universal.” (cf. CASTRO, Mons. Dr. Emílio Silva de. Liberdade Religiosa e Estado Católico. Dinigraf: Rio de Janeiro, 1995, p. 9)
[5] Documentos do Concílio Vaticano II, p. 668 e 669
[6] Documentos do Concílio Vaticano II, p. 671
[7] Documentos do Concílio Vaticano II, p. 157
[8] O Papa Pio XI em 1928 condenou o ecumenismo através da encíclica Mortalium Animos.
[9] PORADOWSKI, Pe. Dr. Miguel. A Gradual Marxistização da Teologia. São Paulo, 1975, p 7.

[10] O regime único da Igreja é Monárquico, faz parte da essência da mesma. É o que faz com que seja a Igreja e não outra coisa.
[11] Leonardo Boff. Marxismo na Teologia, in Jornal do Brasil, com data de 6 de abril de 1980.
[12] DENZINGER, Barcelona, 2270.
[13] PORADOWSKI, Pe. Dr. Miguel. A Gradual Marxistização da Teologia. São Paulo, 1975, p. 16
[14] PORADOWSKI, Pe. Dr. Miguel. A Gradual Marxistização da Teologia. São Paulo, 1975, p 7
[15] LANGLOIS, J. Miguel Ibañez. Igreja e Política. Quadrante: São Paulo, p.12








A BULA CUM EX APOSTOLATUS OFFICIO, comentários do Prof. Tomás Tello Corraliza, catedrático espanhol em língua latina




Introdução

Abundam os comentários sobre esta Bula – parciais ou totais – desde que, por causa do comportamento dos “papas” conciliares, veio à tona a princípios da década de dos 70.

Talvez, o leitor se pergunte: “Para quê um comentário a mais, existindo já tantos? Respondo que sempre será bom que este tema, concretamente, que deu origem a inflamadas polêmicas, seja renovado com novos pontos de vista.

Meu objetivo não é seguir o texto em um comentário linear, desde a introdução até o ponto 10, segundo o proceder comum dos autores, como se sugere já no título: “Variações...”

Trata-se de considerações ou reflexões sobre diversos aspectos aplicáveis à Bula: legais, canônico-teológicos, históricos, lingüísticos, críticos...

Nem tenho que dizer que, para a construção de meu trabalho, aproveito, ao máximo, os materiais e idéias, que contribuem os comentários dos autores que me precederam.

Considero esta Bula um documento eclesiástico de importância capital para a salvaguarda da Fé - função principalíssima do sucessor de Pedro – e insuperavelmente apta para ter evitado a presente crise, se a tivessem levado em conta e se a tivessem observado zelosamente “ad unguem”, segundo o que prescreveu São Pio V.

No meu juízo, aqui está a chave do Mistério da Iniqüidade, anunciado por São Paulo. Por isso, nunca será inoportuno refletir sobre este documento excepcional, tão subestimado durante tantos séculos.

Por trás desta breve introdução, ofereço bibliografia básica de autores de diversos países e de tendências diametralmente opostas.


I- ASPECTO LEGAL “IN GENERE”

Nesta parte se considera a CUM EX APOSTOLATUS OFFICIO na sua condição de lei. Esta Bula de Paulo IV institui uma lei. É uma lei com todas as formalidades de uma lei. Possui, com efeito, todos os elementos estruturais de sua essência, assim como todos os elementos que a integram. Isto salta à vista, e não haveria necessidade de insistir nisso, se não fosse para anular os esforços dos inimigos da Bula para tirar-lhe toda importância legal e reduzi-la a pouco menos que papel molhado.

Segundo a definição de Santo Tomás, “Lei (in genere) é uma ordenação da razão dirigida ao bem comum e promulgada pelo que preside a comunidade.”

A causa final de toda lei é procurar o bem comum da sociedade e questão; neste caso, o da Igreja.

O fim é o objetivo a que tende a operação da causa eficiente ou sujeito agente racional. O fim é o que o impulsiona a operar. Daí, que a causa final é chamada “Causa causarum”, Causa das causas.

O bem comum das leis eclesiásticas não é outro que o procurar e facilitar a salvação das almas. “A Igreja – diz Pio XII – deve conduzir os homens a Deus... A Igreja não pode perder de vista jamais este fim estritamente religioso, sobrenatural. O sentido de todas suas atividades, até o último cânon de seu Código, não pode ser outro que o de concorrer a ele diretamente.”

Isto não quer dizer que cada lei eclesiástica seja a melhor para alcançar este fim... Vejamos se a Constituição Apostólica de Paulo IV se orienta ao mesmo, e em que grau de perfeição o faz.

Os projetos de lei surgem, amiúde, devido a situações conjunturais, que põem em relevo sua necessidade para evitar um mal à sociedade ou contribuir da melhor forma ao seu fim.

Na parte expositiva da lei costuma ser manifestada a conjuntura que a exige. É a ratio legis, a razão da lei.

Paulo IV expõe na Introdução de sua Bula:

a) O motivo que o impulsionou a estabelecer a lei, que não é outro que o gravíssimo dever que pesa sobre ele, por seu cargo de cuidar de toda a grei do Senhor, procurando-lhe pastos sãos, e apartá-la dos venenosos. (“Cum ex Apostolatus Officio... cura dominici gregis nobis immineat generalis, et exinde teneamur pro fideli illius custodia et salubri directione,...).

b) A conjuntura que imperiosamente está exigindo essa lei, a saber, “a rebelião desenfreada, de virulência insólita contra a Fé, do movimento protestante, assim como a perversão do sentido da Sagrada Escritura; circunstâncias que poderiam pôr em gravíssimo perigo as ovelhas, quanto ao fim da Igreja. (“ut qui hac aetate,... propriae prudentiae innitentes licentius et perniciosius solito contra ortodoxae fidei disciplinam insurgunt... catholicae ecclesiae unitatem... scindere moliuntur...”)


c) E a finalidade da mesma, que não é outra que reprimir a audácia dos herejes, com o fim de que não se intrometam no redil do Rebanho de Cristo. (“ut ab ovili Christi repellantur ne magisterium erroris continuent, que discipuli veritatis esse contemnunt.”)

Vemos que o impulso que moveu a Paulo IV, é o mesmo que moveu sempre os Papas a tomarem medidas para salvaguardar o Depósito da Fé, sem a qual é impossível agradar a Deus e que, portanto, tornaria absolutamente impossível o fim da Igreja, que é a salvação das almas.

São Pio X, ao publicar sua Encíclica PASCENDI, não esgrime outro motivo que o do seu gravíssimo dever. Eis aqui suas palavras: “Ao ofício de apascentar a grei do Senhor...”

Esse dever gravíssimo excitava a consciência de um e outro pontífice para não calar: “ne canes muti videamur” para não parecer cães mudos – dizia Paulo IV e São Pio X: “Guardar silêncio não é já decoroso, se não queremos ser infiéis ao mais sacrossanto de nossos deveres.” Esse dever primordial se põe em relevo, como Verdade de fé, no Magistério.”

Quanto à conjuntura, é similar em ambas as ocasiões. Trata-se de conjurar um perigo certo, iminente, para a integridade da Fé. Mas, encontro aí uma diferença notável.

Com efeito; nos tempos de Paulo IV, os lobos rodeavam os confins dos redis. Tanto que, nos tempos de São Pio X, invadiam-nos milhares disfarçados com pele de ovelha, que podia ser, ou era na realidade, uma batina, uma mitra ou chapéu cardinalício.

Continuemos com o paralelismo. O fim concreto, imediato, que se propôs São Pio X foi o de detectar “aos adictos do erro, que se ocultavam no seio e mesmo dentro do coração da Igreja; aos que tramavam sua ruína, não de fora, mas de dentro... com um perigo muito maior, quanto mais a fundo conhecem a Igreja.”

Paulo IV, em contrapartida, naquelas circunstâncias, se prontificou, com visão profética que estremece e com a máxima prudência de serpente, em fazer impossível a entrada no redil aos lobos que, como se disse, tentavam, então, invadi-lo.

Pergunto-me: Podia ter sido evitada a invasão? Desde cedo, se tivessem aplicado com todo rigor – ad unguem, segundo a ordem de São Pio V – as sapientíssimas medidas cautelares da Bula de Paulo IV.

Todavia, na situação descrita por São Pio X, era muitíssimo mais difícil extirpar o câncer que, metastático, tinha invadido o corpo eclesiástico, afetando a órgãos vitais.

Isto não quer dizer que este câncer possa causar a morte da Igreja. Esta não pode morrer, pois, seu divino Fundador empenhou Sua palavra de sua continuidade até a consumação de tudo. “As portas do inferno não prevalecerão.” Mas, mesmo assim, eles a colocaram num transe de agonia, como é evidente; até que uma intervenção divina ponha ponto final a esta situação, devolvendo-lhe todo seu vigor.

Causa eficiente

A existência da lei se deve à vontade do superior legítimo da Comunidade. Suponhamos um projeto de Lei, realizado por um experto jurisconsulto, ótimo para alcançar o objetivo do bem comum; esta lei, considerada de maneira abstrata como não podendo ser melhorada, jamais chegará a ser lei, se não a promulgar o chefe supremo da Comunidade.

Neste caso, temos o elemento exigido para a existência da lei: A promulgação (“Leges instiuuntur cum promulgantur”, Canon 8), a “Iussio publicandi”, por parte da legítima autoridade do Papa Paulo IV, em 15 de fevereiro de 1559, dando a ordem de publicação (nº IX da Bula) e divulgação, com o modo e termos em que se fazia por aquelas datas, segundo pode-se ver na Bula de São pio V “QUO PRIMUM TEMPORE”, ou na de Sixto V “POSTQUAM VERUS”, para citar alguns exemplos.

Ademais, para lhe dar maior ênfase e solenidade, Paulo IV a submeteu a deliberação com seus Cardeais e quis redigi-la de acordo com eles e com seu consenso. Ao final, os cardeais confirmaram-na com suas assinaturas. Foi uma Constituição das chamadas Consistoriais, pelo fato de os cardeais terem-na assinado também.

Este dado se opõe radicalmente aos detratores da Bula, que vêem nela somente o capricho e arbitrariedade de Paulo IV e um zelo desordenado.

Como a lei é um ordenamento da razão, um ditado da razão prática ou preceito, este, além de justo, deve ter a condição de:

a) Obrigatoriedade
b) Estabilidade


Agora bem, a intenção de obrigar emerge com ênfase e força, desde o início ao fim, com a sanção final do ponto final (X):

“A ninguém será lícito infringir esta página... nem contradita-la com temerária ousadia. Mas, se alguém intentar, saiba que incorrerá na indignação do Deus todo poderoso, etc.”

Quanto à sua estabilidade, ele a reafirma explicitamente: “perpetuo observari” (II) (deve-se observar perpetuamente) e “hac nostra in perpetuum valitura constitutione” (por esta nossa constituição que terá validade perpétua), (III).

Quero fazer constar – é um dado que explicitamente não encontrei em nenhum autor – que se trata de uma lei basicamente inabilitante e irritante, segundo se põe em relevo nos pontos III, V e VI. É o fim primário a que se propôs Paulo IV. É o fio condutor da Constituição.


II - ASPECTO CANÔNICO-TEOLÓGICO

No primeiro artigo, considerou-se a Bula “Cum ex Apostolatus Officio” como lei “in genere”. Neste, a consideração se centrará em sua especificidade de lei canônica; isto é, como integrada no conjunto de leis promulgadas pela Igreja, que recebe o nome de Direito Canônico, o mais comum dentre outros, que se aplicam: sagrado, religioso, eclesiástico, etc.

Objetivo do Direito Canônico é ordenar os meios mais convenientes para o bem geral da Sociedade fundada por Cristo e orientá-los a facilitar a eterna salvação de seus membros, que é o fim da Igreja.

A Constituição “Cum ex Apostolatus Officio” pertence ao Direito Canônico antigo, segundo se denomina todo o Direito Eclesiástico anterior ao Código de 1917.

O Direito Canônico está em íntima conexão com a Teologia, e isto por várias razões:

I) Por suas fontes: a Revelação e a autoridade da Igreja, imposta pela mesma Revelação divina.
II) Pelo seu objeto material: Constituição e regime da Igreja, direitos e obrigações do clero e fiéis, no plano social e em suas relações mútuas.
III) Em razão do seu fim: a salvação das almas.


Mas, Direito Canônico e Teologia, se diferenciam em razão do seu objeto formal; pois, a Teologia o considera sob o aspecto da Fé, nas relações pessoais do fiel com Deus, em contrapartida, o Direito Canônico se orienta à práxis na ordem social segundo as exigências, por suposto, da mesma Fé. Por isso foi dito que o Direito Canônico é uma Teologia prática.

Mas que relação existe entre o Direito antigo e o Direito codificado em 1917? Pois, uma relação de continuidade, sem fissuras quanto ao substancial. É o mesmo Código que faz constar, no seu Cânon 6, que entre este e o Antigo, não existe, em seu conjunto, diferença essencial. O Código – se diz na introdução do Canon citado – conserva, na maioria dos casos, a disciplina até agora vigente, ainda que não deixe de introduzir oportunas variações.

Este mesmo Cânon, em seus seis parágrafos dispositivos, descreve com nitidez insuperável, as circunstâncias em que são mantidas, com todo o seu vigor, as Leis do Direito antigo.

I – Neste parágrafo, se dá a forma geral de que todas as leis se oponham ao Código, a não ser que expressamente seja prevista outra coisa, ficam abrogadas.

II – Quanto aos cânones que reproduzem o Direito antigo, estes devem ser avaliados de acordo com esse Direito...

III – Os cânones que somente em parte concordam com o direito antigo hão de ser avaliados conforme este, na parte que concordam; no que discrepam deve prevalecer o sentido do Código.

IV – Na dúvida, prevalece o Direito antigo. In dubio – diz o Cânon – a veteri iure non est recedendum.

V – No que se refere às penas, há que se ater às que estabelece o Código, ficando absolutamente abolidas todas as penas do Direito antigo que discrepem das estabelecidas no Código.

VI – Quanto às leis disciplinares, vigentes até a promulgação do Código, se, nem explícita nem implicitamente, estão contidas no Código, há que se decidir que perderam todo seu valor, exceto no caso em que se encontrem nos livros litúrgicos aprovados, ou se trate de leis de DIREITO DIVINO, seja POSITIVO, seja NATURAL.

Conclusões que se impõem

Há que se dizer, em primeiro lugar, que as disposições penais da Bula, que não se ajustem às prescrições penais do Código perdem o seu valor. E isto, por uma simples razão. A Igreja, por direito divino, tem o dever de impor castigos. Bem, a modalidade e medida concreta da pena aplicável a cada delito é uma disposição de direito eclesiástico, sempre que a pena concreta não for de direito divino, como, por exemplo, os delitos contra a Fé, que por sua própria natureza, “suapte natura”, como ensinou Pio XII, implicam na excomunhão.

Portanto, creio que não vale a pena travar um debate sobre a validade absoluta das disposições penais da Bula, já que as que são de direito divino – como não podia ser menos – constam no Código. O debate deveria centralizar-se sobre a parte disciplinar da Bula, para calibrar o valor dessa lei, sobretudo, no que tem de irritante e inabilitante.

Agora, o que não pode dizer-se sem manifesta temeridade ou má Fé, é que a Bula Cum ex Apostolatus Officio tenha perdido todo seu valor enquanto lei. Sua vigência fica proclamada no Cânon 6. Isto é evidente para qualquer um que o leia sem juízos prévios, seguindo a norma destacada no Cânon 18, isto é, atendo-se à significação própria das palavras, consideradas no texto e no seu contexto.

Com efeito, segundo o nº 2 do Cânon 6, o Cânon 188, 4, reproduz em sua essência, a lei inabilitante do nº 3 da Bula de Paulo IV. Cotejemos o Cânon 188, 4 com o parágrafo terceiro da Bula.

Can. 188, 4: Ob tacitam renunciationem ab ipso iure admissam quaelibet officia vacant ipso facto et sine ulla declaratione si clericus a fide catholica publice defecerit

Nº 3 da Bula: Hac nostra in perpetuum valitura constitutione... sancimus, statuimus, decernimus et definimus quod... qui hactenus... deviasse, aut in haeresim incidisse... deprehensi, aut confessi, vel convicti fuerint, et in posterum deviabunt... (ultra sententias, censuras et poenas praedictas) sint etiam eo ipso, absque aliquo iuris aut facti ministério... suis beneficiis et officiis eclesiasticis... penitus et in totum perpetuo privati...

Cânon 188, 4: “Em virtude da renúncia tácita admitida pelo mesmo Direito, ficam vacantes, ipso facto, e sem alguma declaração, todos os ofícios, se o clérigo se desvia publicamente da Fé católica.”

Teor da Bula: “... por esta nossa Constituição, que será valida perpetuamente... sancionamos, estabelecemos, decretamos e definimos que os que, até o presente, houvessem sido surpreendidos, ou fossem confessos ou convictos de terem-se desviado (da Fé), ou incorrido em heresia, assim como os que, no futuro, se encontrarem nas mesmas circunstâncias, (além das sentenças, censuras e penas anteriormente citadas) devem ficar inteiramente, e para sempre, privados, pelo próprio direito, sem maior trâmite jurídico ou de fato, de seus benefícios e ofícios eclesiásticos.”

Aqui temos um caso patente do suposto parágrafo segundo do Cânon 6. O Cânon 188, 4, pois, reproduz a lei inabilitante da Bula de Paulo IV. Portanto, no caso concreto, a dita lei do Direito antigo conserva plena vigência e, além disso, de maneira prevalente na interpretação, já que o cânon do Código deve ser avaliado de acordo com a lei antiga que reproduz.

E não se pode argüir dizendo que a lei da Bula é desmesuradamente extensa, em comparação com a brevidade telegráfica do Cânon 188, 4. Deve-se ter em conta uma distinção importante entre a redação de um Código e a promulgação de uma lei.

Com efeito, nos códigos somente consta a parte essencialmente dispositiva da Lei, expressa da maneira mais exata possível, mas livre (ESCUELTA). Todavia, em sua promulgação, expõem-se as razões que exige a lei, quais são os meios mais adequados para alcançar seu objetivo, explicações, enumerações, digreções, etc. E mais, na Bula de Paulo IV, muito difusa, como poderá comprovar todo o que a ler, que, por afã de exaustividade, se dilata em enumerações intermináveis.

Portanto, a CUM EX APOSTOLATUS OFFICIO, em seu aspecto disciplinar de lei irritante e inabilitante, mantém sua plena vigência na atualidade e, precisamente, o sentido e alcance da prescrição do Cânon 188, 4, deve se calibrar de acordo com o sentido e alcance da lei da Bula. E é sabido que as leis eclesiásticas, por sua íntima conexão com o Direito divino, se beneficiam da infalibilidade da Igreja, ao menos em sentido negativo. Isto é, que ao estar em conexão com as verdades reveladas (finaliter connexae), não podem conduzir ao mal, nem ser óbice para a salvação. Pio VI condenou como, ao menos errôneo, considerar perigosa ou nociva uma lei eclesiástica. (DS 2678)

Não obstante, se algum leitor se mostra cético sobre o Cânon 188, 4 que reproduz a lei inabilitante da Bula, vou-lhe conceder, generosamente, o benefício da dúvida.

Mas é o caso que, dado esse pressuposto, se chega aos mesmos resultados, pois, no caso de dúvida, o parágrafo 4 do Cânon citado (veja-se mais acima), prescreve que devemos nos ater ao Direito antigo: A vetere iure non est recedendum.

No apartado 6 do Cânon citado, se declara, sem o menor equívoco, que as leis de Direito Divino, seja positivo ou natural, conservam todo seu vigor, apesar de não constarem nem explícita nem implicitamente no Código.

Assim, pois, ainda que a lei inabilitante e irritante da CUM EX APOSTOLATUS OFFICIO não constasse, em absoluto, no Código, nem por isso deixaria de ser uma lei ainda em pleno vigor; por ser uma lei de Direito divino, de dupla partida, isto é, positivo e ao mesmo tempo natural. Permita-me uma digressão.

As publicações sedevacantistas chegaram ao meu conhecimento com certo atraso – a partir de 1980, ou pouco antes – não obstante, tive notícias da posição sedevacantista pelo ano de 1969, através de publicações não sedevacantistas ou anti-sedevacantistas, como a CONTRE-REFORME CATHOLIQUE de George de Nantes, fanático impugnador do sedevacantismo e detrator dos sedevacantistas.

Esse padre – por causa de seu prestígio – manteve-me entre duas águas, até que conheci a Bula de Paulo IV, a princípios de 1977. O impacto que me causou sua leitura bastou para inclinar-me, de maneira firme, irrevogável e combativa, a favor do sedevacantismo: considerei esta postura como a única lógica, inteligente e fecunda na explicação e compreensão da atual crise eclesial.

George de Nantes havia afirmado no seu artigo, Hors de l’Eglise poin de salut (CRC n. 107, Jul. 1976), que não era lícito, nem sequer duvidar da legitimidade de Paulo VI.

Como reação a este artigo, escrevi uma carta a seu autor (4-8-1977) – à que não respondeu -, na que me confessava sedevacantista, baseado na Bula de Paulo IV; rechaçava sua categórica afirmação e mostrava as razões de minha posição.

Entre as razões alegadas, apelava eu ao Direito natural como fundamento da incompatibilidade intrínseca definida pela Bula. Fazia alusão à monstruosidade ou quimera, que descreve Horácio na “Epistola ad Pisones”, que resultaria do fato de que um elemento estranho a um corpo pudesse passar a ser, nada menos que sua cabeça. Esse enxerto – dizia – destruiria a natureza do corpo em questão, ao ser a cabeça que imprime seu comportamento.

A incompatibilidade é, pois, absoluta e, nessa absoluta incompatibilidade, precisamente, se basearam Cajetanus e São Roberto Belarmino para suas conclusões. Ainda mais: houve dois Papas que fizeram alusão expressa a essa incompatibilidade intrínseca, ontológica. Inocêncio III disse: “Cum nimis absurdum sit ut Christi blasphemus in Christianos vim potestatis exerceat.” Isto é, “por ser um absurdo total que um blasfemo de Cristo possa ter jurisdição sobre os Cristãos.” (In. III em IV Lateranense) E Leão XIII: Cum absurdum sit opinari... seria absurdo opinar que aquele que está fora da Igreja possa presidir na mesma.” E já se sabe que o absurdo qualifica a toda idéia que entranha contradição intrínseca...

Esta lei natural, prescindindo do conhecimento da prescrição do Cânon 188, 4 e da CUM EX APOSTOLATUS, a intuem e a aplicam os simples fiéis, guiados pelo simples “sensus Fidei.” Assim sucedeu nos primeiros que sobressaltaram ante o comportamento ambíguo de Roncalli, com relação à Fé, segundo expus no meu trabalho sobre o mesmo. (Cf. Kyrie Eleison, XII, 1993, n. 3, p. 35-40)

São vários os autores sedevacantistas que reconhecem, expressamente, na lei da vacância por heresia, uma lei de Direito natural. O Dr. Hugo Kellner, por exemplo, num escrito de 1967, se baseia, para chegar à conclusão da vacância da Santa Sé, nessa incompatibilidade intrínseca entre a falta de Fé e a Autoridade na Igreja. “...Portanto – disse – é o firme mantimento da Fé católica o fundamento de toda Autoridade na Igreja e a premissa indispensável de todos aqueles aspirantes a um cargo eclesiástico... E continua: “As formalidades canônicas são necessárias, mas não suficientes... Se somente bastassem os requisitos legais, ter-se-ia que aceitar a monstruosidade de que estivessem autorizados por Cristo, para assassinar alegremente as almas... por meio de sua doutrina e práxis.” (Cf. EINSICHT, I (3), Jun. 1971, p. 25-35 e I (4) Jul. p. 30-34)

Outros autores que, explicitamente, consideram incompatibilidade de Direito natural esta lei inabilitante, são Martin Gwyne, que fala de contradição lógica, e o Dr. Homero Johas, que a denomina “incompatibilidade ontológica.” Outros – como Michael Wildfeuer – a dão por suposta implicitamente. (Eins. II (2) M. 1972)

Insisto, é um absurdo que um membro alheio ao corpo, possa chegar a ser cabeça do mesmo. Não há corpo que o aceite, nem físico, nem moral ou jurídico.

Uma pessoa que não pertença a uma sociedade qualquer, fica, logicamente, excluída de ser presidente ou de formar parte da Junta diretiva da dita sociedade; e isto, sem necessidade de que exista prescrição expressa, em suas leis ou regulamentos. Seria supérflua. Trata-se de um rechaço lógico e natural.

Com efeito, um corpo admite ou pode admitir um transplante de qualquer outro membro, que não seja a cabeça, desde que isso não impeça seu funcionamento normal. No entanto, o transplante de uma cabeça faria com que ele tivesse um comportamento incoerente com sua própria natureza e com seu fim.

Resultaria em ser uma quimera. Nós poderíamos imaginar o comportamento de um ser humano que tivesse recebido num transplante a cabeça de um Gorila? Pois isso, e não outra coisa, é o que aceitam os sedicentes tradicionalistas, ao permanecerem integrados à monstruosa igreja conciliar. Eles são os que dão origem à quimera dessa igreja, mantendo a ilusão da segurança de pertencer à Igreja Católica verdadeira, apesar do regime de uma cabeça estranha. Admitem como Vigário de Cristo a um herege, e não querem ver que se trata de uma contradição in terminis.

Trata-se, pois, de uma lei inabilitante de Direito natural. É evidente. Mas, é, também, ao mesmo tempo, uma Lei de Direito divino positivo. Com efeito, o é, por constar expressamente na Revelação o fato de que a heresia, suapte natura, como ensinou Pio XII, separa automaticamente do Corpo Místico.

No Deuteronômio se prescreve: “... a um de teus irmãos tomarás para fazê-lo rei sobre ti; não poderás dar-te por rei um estrangeiro que não seja teu irmão.” (Dt. 17, 15)

São Paulo expressa essa incompatibilidade absoluta, apelando a uma hipótese limite: “mas ainda que nós ou um anjo baixado do céu vos anunciássemos outro Evangelho, distinto do que temos anunciado, que seja anátema! Eu vos disse antes e agora repito: Se alguém vos pregar outro evangelho distinto do que recebestes, seja anátema! (Gl 1, 8-9) É rigorosíssimo. Nas versões é costume traduzir o termo latino “preterquam” e o grego “parà”, por “contra”, mas, no meu parecer, o termo da tradução espanhola da BAC, “distinto”, expressa muito bem o matiz da preposição, tanto grega quanto latina.

São, assim mesmo, pertinentes e são citados com profusão os textos de Tit. 2, 1 e II Jo. 10-11. Por outra parte, a Tradição, como transmissora da Divina Revelação, é unânime neste aspecto. Ainda mais, essa Tradição é corroborada por declarações de diversos Papas como Adriano II, Inocêncio III e a solene definição de Paulo IV.

Nesse fundamento de lei divina insistem os comentaristas defensores da Bula, como pode observar qualquer um que a ler.

Quis Deus que essa lei natural fosse ratificada por uma lei divina positiva, dada a transcendência deste assunto, com o fim de que facilmente fosse conhecida por todos; assim, como por meio de Moisés foram promulgados os Mandamentos que eram leis naturais.

Portanto, por prescrição do mesmo Direito eclesiástico (C. 6, 6), a Bula, no que se refere ao fato concreto da lei inabilitante e irritante, mantêm todo seu vigor e é, por ela que deve ser interpretado o Cânon 188, 4 e não ao contrário, como fazem os adversários da Bula...


III – ASPECTO LINGUÍSTICO

A primeira coisa que saltou à vista ao ler pela primeira vez esta Bula, foi a dificuldade de captar o sentido pleno de vários de seus períodos gramaticais. É um texto latino que não se presta a uma fácil tradução às línguas vernáculas. É tarefa árdua.

Esta dificuldade é reconhecida e constatada por diversos autores, que tiveram o trabalho de traduzi-la para as suas línguas. Por exemplo, BRITONS disse: “Fairly complex Latin.” E em outro parágrafo: “Em nossa versão, temos nos esforçado em fazê-la o mais compreensível possível. Tarefa árdua, pois, a Constituição está redigida em estilo curial, e contêm orações demasiadamente largas e cheias de pormenores, que é preciso reler, atentamente, várias vezes, antes de captar plenamente seu sentido.”

Die Übersetzung Von der lateinischen in die deutsch Sprache war nicht leich, confessa o editor da versão alemã.

E o Dr. Homero Johas: “Para muitos, a tradução da Bula de Paulo IV parece obra difícil.”

O latim da Bula dista muito do latim de corte clássico, de que se faz gala em Encíclicas de Leão XIII, Pio XI ou Pio XII, por exemplo. No entanto, na CUM EX APOSTOLATUS OFFICIO, em um estilo difuso e redundante, nos são oferecidos períodos intermináveis, enumerações, com pretensões exaustivas, incisos freqüentes, orações explicativas com manifestado afã de deixar as coisas claras e desfazer qualquer ambigüidade. Isto dá lugar a que se perda o fio condutor do discurso e a conexão entre os diversos enunciados. Há períodos que, entre o nexo e a palavra da oração subordinada à que afeta, estão separados por uma larga série de complementos e incisos.

Os autores costumam atribuir a dificuldade de tradução à desmesurada longitude, mais que ciceroniana, dos parágrafos, e à terminologia jurídico-canônica ou curial do texto.

Mas eu encontro algo a mais, que afeta mais negativamente a dificuldade de tradução; a saber, a falta de um adequado uso dos sinais de pontuação. É um texto muito parco no uso do ponto e do ponto e vírgula. A ausência de uma correta pontuação – fronteira semântica – danifica a devida coerência e coesão do texto. A isto, em grande medida, se devem as divergências nas várias versões dos diversos autores; já que são eles os que devem suprir, de acordo com seus próprios critérios, pontos, ponto e vírgula, parêntesis, etc. O qual não deixa de ser, em certa medida, subjetivo e exposto a uma interpretação alheia a do autor do texto. Não obstante, reconheço que há que se assumir este risco, para conseguir a devida coerência e coesão textual.
Mas, além dos fatores extrínsecos enumerados, existe o maior óbice, o fator intrínseco do arrevesado da construção oracional, em que se abusa da construção hipotática, ou orações subordinadas. Estas se sucedem em cascata e atropeladamente. Há parágrafos que se compõem integralmente de orações subordinadas. A introdução, por exemplo, está totalmente estruturada com orações subordinadas, com os verbos no subjuntivo ou na forma nominal, sem uma só oração principal com o verbo subordinante no indicativo, como normalmente; pois, os dois indicativos existentes formam parte de uma oração subordinada de relativo.

O tradutor deve suprir a hierarquização com esforço próprio, tomando uma das subordinadas como principal e fazendo girar a seu redor todas as demais.

O mesmo acontece com o parágrafo primeiro. Se queremos por ordem na versão e hierarquizar as idéias, devemos tomar o particípio “cupientes” como oração principal. No parágrafo II, o verbo indicativo, subordinante de todas as demais orações do larguíssimo período, se encontra no final: “Volumus” coordenado com “decernimus.”

Devido às dificuldades assinaladas, é difícil conseguir uma versão perfeita. Por isso, os autores das diversas versões costumam criticar como defeituosas as traduções anteriores à sua. Eu não sou uma exceção.

Com efeito, nenhuma das versões que conheço me satisfez plenamente. Por este motivo, ofereço a minha – uma nova versão espanhola – com a esperança de conseguir uma maior perfeição e matização no sentido de alguns sintagmas. Tenho a vantagem de ter cotejado entre si e com o texto original as versões de diversos autores e línguas. O estudo de trabalhos precedentes, em qualquer ramo do saber – a Bibliografia – contribui poderosamente para abater erros e aproveitar um melhor cultivo do terreno, previamente trabalhado por outros.

Para lograr uma boa e fiel tradução – se bem que a plena perfeição parece ser impossível – deve-se evitar essas traduções pedestres, demasiadamente apegadas à letra – materialmente considerada – assim como a construção original, que somente pode dar lugar a uma confusão.

Não obstante, a tradução não pode deixar de ser literal, em seu aspecto formal, se não queremos cair num subjetivismo em que o conteúdo original, em lugar de ser refletido lealmente, seja suplantado por nosso pensamento.

Assim, pois, me aterei à letra, em seu aspecto formal e, na medida do possível, me esforçarei para que seja literária, para fazê-la inteligível; para limar a aspereza e aridez, próprias do estilo curial, e a peculiaridade do presente texto e evitar assim, o tédio que produz a leitura.

Com o fim de facilitar uma melhor compreensão do essencial do texto, se destaca o fio condutor do discurso, com distinto tipo de letra, daquilo que for redundante e cheio: enumerações detalhistas, incisos explicativos prescindíveis, etc. De tal maneira que, lendo a parte destacada graficamente, se capte o sentido substancial da mensagem.

Antes de oferecer minha versão da Bula, gostaria de fazer algumas pertinentes observações acerca de várias das frases sobre as quais se dão divergências entre os distintos autores, com o fim de justificar minha opção e minha versão. Mas, como isso levaria a uma desmesurada extensão deste artigo, vou me limitar a criticar a coincidência na versão de uma frase, na que convêm todos os autores, e justificar a minha.

Trata-se da primeira frase introdutória do parágrafo 1.

“Nos considerantes rem huiusmodi adeo gravem et periculosam esse, ut Romanus Pontifex, (...) possit, si deprenhendatur a fide devius, redargui (...)”


Eis aqui como a traduzem as diversas versões que conheço:
VERSÃO ALEMÃ: In Anbetracht dieser so schwierigen und gefahrvollen Angelegenheit hat der Römische Pontifex der (…) jedoch darf ihm widersprochen warden, wenn er als vom Glauben abgewiscen erfunden wird.

VERSÃO ESPANHOLA: (Da revista ROMA) “Nos considerando esta materia de modo grave y el Romano Pontífice (...) pudiera ser rebatido si fuera sorprendido como desviado de la Fe;”

(Do Dr. Disandro) “Nos considerando la gravedad particular de esta situación y sus peligros al punto que el R.P. (...) si fuese sorprendido en una desviación de la Fe, podria ser acusado;”

VERSÃO FRANCESA: “Devant la situation actuelle si grave et si dangereuse, Il ne faut pás que l’on puísse reprocher au P.R. de devier dans la Foi (...)”


IV – VICISSITUDES DESTA CONSTITUIÇÃO APOSTÓLICA
Suas causas e fatores determinantes

Já conhecemos a conjuntura histórica que exigia esta lei, para evitar a ruína da Igreja.

Paulo IV, com a máxima prudência da serpente, previu, proveu e denominou a situação atual da Igreja – Abominação da Desolação – e, em sua lei, oferece e prescreve as medidas adequadas, ótimas, para conjurá-la.

Paulo IV estabelece, no parágrafo I, o plano global de atuação: Caçar as raposas que tentam destroçar a vinha do Senhor (“vulpere capere”) e afastar os lobos do redil (et lupus ab ovili arcere).

Com estas medidas gerais, se pretende fazer impossível o fato de que algum heterodoxo se infiltre nas fileiras da Hierarquia eclesiástica, em qualquer de seus graus, quer sejam “raposas”, entre os mancebos do rebanho de Cristo – párocos e sacerdotes, em geral – quer sejam “lobos”, entre a classe episcopal, sem excluir a um possível Archi-Lobo, transfigurado em Supremo Pastor ou maioral da grei, do que se faz especialíssima menção neste primeiro ponto.

Sim, este está preferencialmente no ponto de mira, desde o princípio da Bula; e não é de se estranhar. Com efeito, no texto, insiste-se exaustivamente sobre os diversos graus da Hierarquia, com o fim de conjurar a infiltração no cimo; pois, enquanto este se mantiver incontaminado, a grei, em seu conjunto, gozará de boa saúde; do contrário, a ruína global será inevitável.

Paulo IV tem sempre presente o perigo e a possibilidade de que, parece pressentir, um heterodoxo ascenda ao Supremo Pontificado. Diante desta possibilidade, se sente horrorizado, e, de sua parte, consciente de seu gravíssimo dever, tenta impedi-lo. Uma vez colocado em relevo, na Introdução, o motivo e o objeto de sua Constituição; no Parágrafo I, se eleva de repente e dirige seu ponto de mira ao Chefe Supremo, ao superior da grei de Cristo. Por quê? O mesmo Papa dá a razão de semelhante atitude, ao encarar a possibilidade de que o maioral chegasse a se converter em Archi-Lobo, pelas conseqüências fatais e inevitáveis para todo o rebanho.

Por isso, inicia o parágrafo com estas palavras: “Considerantes huiusmodi rem adeo gravem...” ou seja, “Tendo em conta a extrema gravidade e periculosidade que entranharia o fato de que um Romano Pontífice possa ser repreendido, no caso em que fosse surpreendido como desviado da Fé...”

Pelo qual, pensa que se devem tomar medidas cautelares drásticas para que isto não se suceda, por supor um perigo maior – Ubi maius intenditur periculum – que se cole um falso profeta nos postos de mando; tanto mais daninho e corrosivo, quanto mais alta for a dignidade usurpada.

Com efeito, acrescento eu, não é igual o efeito desastroso no posto supremo, por seu irresistível poder de irradiação e sedução universal sobre todo o rebanho (até o ponto de poder seduzir aos eleitos, se isso fosse possível); que se o Falso ocupe a dignidade da escala inferior do episcopado. Neste caso, somente afetaria uma porção limitada do rebanho e não, por suposto, com este caráter de irradiação virulenta e irresistível sedução do presumido Pastor heterodoxo. E muito menos se o intruso é um Pároco, cuja parte de influência sobre o rebanho seria infinitesimal em todos os aspectos.

Neste documento principal, se prescreveram as medidas absolutamente eficazes para ter impedido a crise eclesial atual; todavia, foi inoperante. Por quê? O desentranharemos no transcurso deste trabalho.

Como base da crise temos o MISTERIUM INIQUITATIS, de que fala São Paulo, que já estava em ação nos tempos apostólicos.

Qual é o objetivo concreto dos inimigos de Cristo e de sua Igreja? Segundo Leão XIII (em Humanum Genus), “estes maquinam a ruína total da Igreja, com o propósito de destruí-la, se pudessem, e despojar inteiramente aos povos cristãos dos benefícios que lhes granjeou Jesus Cristo.”

O poder do INÍQUO, por permissão divina, chegará muito longe; talvez, como chegou no episódio de Satã e Jó: in manu tua est verumtamen animam illius serva. Ou seja, “Em tuas mãos a coloco (a Igreja), mas conserve sua vida”. (Jó 2, 6). À Besta “lhe foi outorgado fazer guerra aos santos (=católicos) e vencê-los”. (Ap 13, 7; Dn 7, 21). Seu triunfo, pois, se bem que efêmero, será quase total.

Mas, temos a certeza dogmática da promessa de Cristo, de que as portas do inferno não prevalecerão. O Tridentino declara a respeito: “O Símbolo da Fé é o princípio, no que todos os que confessam a Fé de Cristo convêm necessariamente; e é o fundamento firme e único, contra o qual as portas do inferno não prevalecerão”.

Se a Igreja seguirá vivendo e alentando, apesar de que as feridas sejam mortais, de necessidade, e possam dar a sensação de haver morrido a igreja; como a teve Elias quando do desaparecimento do verdadeiro culto em Israel, até o ponto de queixar-se ao Senhor de ter ficado só. Mas a divina resposta lhe assegurou que estavam reservados SETE MIL varões... (Rm. 11, 14)

A Fé, fundamento indestrutível, como disse o Tridentino, permanecerá, certamente, intacta; mas, só em um resto, proporcionalmente, insignificante, disperso pelo mundo, à margem das estruturas oficiais dos Apóstatas. Por isso, não é estranho que o mesmo Jesus se faça a pergunta: “Mas, quando vier o Filho do homem, porventura, encontrará a Fé sobre a terra?” (Lc 18, 8) Esta pergunta é denotativa dos estragos causados pela ação do mistério da iniqüidade.

Todavia, - insisto – o triunfo do inimigo poderia ter sido evitado, infalivelmente, com o zeloso cumprimento das medidas cautelares prescritas na Bula de Paulo IV.

Mas, por desgraça, essas medidas cautelares foram esquecidas quando mais falta fazia tê-las em conta.

Bem é verdade que esta Lei deu seus primeiros passos com firmeza e evitou eficazmente que o suspeitoso Morone fosse elevado à Suprema dignidade, devido à integridade e inteireza de São Pio V, que exibiu a lei de Paulo IV como impedimento para sua eleição.

Ainda mais, Ghislieri, uma vez eleito Papa, zelosíssimo defensor da Fé, com seu predecessor Paulo IV, plenamente consciente de seu dever e da suma importância da dita Lei, sete anos depois de sua Promulgação, a ratifica, ordenando que se guarde “ad unguem”, ou seja, zelosamente, com maior exatidão. (Cf. Motu Próprio “Inter Multiplices”).

Mas, o caso é que, uma vez falecido São Pio V, parece ser que a Cum ex Apostolatus Officio foi tragada pela terra. A Lei estava aí. Ninguém a havia anulado, abrogado ou derrogado. Todavia, Ai! se essa Lei fosse esquecida, preterida ou silenciada, subestimada e, por último, na atualidade, ferozmente, satanicamente, impugnada e atacada...

Disto se queixa, amargamente, o Dr. Disandro: “Muitos destes documentos careceram de real eficácia; foram ignorados ou desobedecidos, se relegaram, sem maiores conseqüências, aos arquivos protocolares...”

Sim, um documento principal para a eficaz defesa da Fé, que deveria ter sido tema constante de saborosos comentários e de uma minuciosa casuística para canonistas e teólogos, passou tão despercebido como se não existisse. Parece como se tratasse de uma conjuntura de silêncio. Que habilidade para escamotear essa crua e urticante realidade!

Teria sido fácil dirimir, de uma vez por todas, a partir da promulgação desta Lei, a possibilidade de um Papa caído em heresia, como pessoa privada, com suas conseqüências iniludíveis, sem ter medo de se perder pelo labirinto de opiniões - “desfile fenomênico de opiniões”, como denomina o Dr. H. Johas – divergentes e contrapostas, até a contradição.

Como, pois, explicar o fato da frustração dos fins da Bula de Paulo IV? Na dinâmica histórica, tudo tem suas causas concretas, ainda que, como neste caso, se trate de um Mistério: MISTERIUM INQUITATIS. O triunfo do Iníquo na crise atual estava profetizado (Cf. II Tess 2, 5-12); e o profetizado não pode falhar (Cf. Mt 26, 54); antes de se cumprir uma profecia não podemos imaginar como se realizará, mas, uma vez realizada podemos chegar a conhecer as causas que lhe deram lugar, assim como seu encadeamento.

A trama do inimigo, sua trajetória e táticas, podem ser seguidas, passo a passo, no devir dos acontecimentos.

De entrada, contamos com um pressuposto básico, real, o da suma astúcia do inimigo. Com efeito, “os filhos deste mundo são mais sagazes, entre seus congêneres, que os filhos da Luz.” (Lc 16, 8) Por isso, se nos ordena que sejamos prudentes como as serpentes (Mt 10, 16) assim como que nos guardemos dos homens. (Lc 10, 17)

Os filhos das trevas sabem perfeitamente o que querem e o que não querem e os meios mais aptos para lograr seus objetivos.

Neste caso concreto, os filhos das trevas, com intuição querúbica, captaram infalivelmente a realidade, o alcance e as conseqüências, que se derivariam para seus planos, da exata observância da lei de Paulo IV. Era a barreira infranqueável para que eles pudessem retirar o obstáculo que impedia seu pleno triunfo. Este documento então deveria ser anulado e frustrado. Para isso contavam com a cândida inocência dos filhos da Luz. Aqui está a chave para explicar o fenômeno do rechaço deste documento.

Os filhos das trevas, na consecução de seus objetivos, observam exatamente a todas as regras que marcam a prudência, em especial, no que se refere ao seu reto uso:

a) Providência, ou seja, o ordenamento dos meios mais rápidos para conseguir o fim e prever as conseqüências do ato que será realizado.
b) Circunspecção, ou a atenta consideração das circunstâncias, para não precipitar-se e aguardar a ocasião oportuna para agir.
c) Cautela ou precaução contra os impedimentos extrínsecos que pudessem comprometer o êxito da empresa.

Além da perfeição destas partes integrais da prudência, possuem, com habilidade insuperável, aqueles vícios falsamente parecidos com a prudência: astúcia, dolo, fraude... O recurso à insídia é uma constante; e contra a insídia não existe prudência humana que valha. Mas, largamente, os filhos das trevas, com toda sua astúcia, sempre se engrandecerão contra a Sabedoria divina; pois, “não há sabedoria, nem prudência, nem conselho contra o Senhor.” (Prov. 21, 30) “Ele surpreende o sábio em sua astúcia e frustra os desígnios dos malvados”. (Jó 5, 15)

Por isso mesmo, ainda que a sagacidade dos filhos deste mundo supere a dos filhos da Igreja, em geral, nem todos caem nas redes de sua astúcia; sempre há e haverá clarividentes, iluminados por Deus, que prevêem os desígnios do inimigo e avisam aos demais do perigo. Por isso, não faltam, nem faltarão culpáveis quando a “inocência” chega a um certo grau de estupidez, por não ouvir os avisos dos clarividentes.

A partir de agora, serão colocados em relevo certos fatos concretos da trama excogitada, que conduziram à situação de crise atual na Igreja. “Essa trama – diz Disandro – pode ser construída perfeitamente, essa obscuridade pode ser seguida passo a passo... a história que comporta nomes, decisões, acontecimentos e conflitos, inequivocamente diferentes, mas que aparecem delineados numa só direção: o triunfo... do Anticristo.”

Logo, é de se estupefar ante as sapientíssimas e sutilíssimas disposições endereçadas a suprimir ou “retirar do meio o obstáculo que impedia seu triunfo pleno.” (II Tess. 2, 6-7)

Muito podemos aprender da maneira de proceder dos inimigos da Igreja, pois, nada melhor para vencer o inimigo ou, ao menos, para não deixar-se vencer, que conhecer suas tretas e ardis para obviar-los.

Adverte-se que não se trata aqui de rastrear a todos os procedimentos do inimigo ao longo dos séculos – sua atividade se iniciou já na era apostólica – com o fim de desbaratar a Obra de Cristo. O assunto terá que ser reduzido.

Aqui, somente se trata daqueles personagens que, por sua ação ou por sua omissão, constituem os pregos, que contribuíram para deixar inoperante a Bula de Paulo IV, insuperavelmente apta, como já foi dito, para evitar que desaparecesse o obstáculo, que impedia o pleno triunfo do inimigo.

Temos, em primeiro lugar, o teólogo holandês Albert Pighius (vulgarmente PIGHI), (1490-1542).

Sim, ainda que ao leitor lhe cause estranheza o fato de que um autor, anterior à promulgação desta Bula tenha podido influir em silenciá-la, preterir-la e, por último, em impugná-la temerária e satanicamente. Aqui, temos a chave para captar todo o processo.

PIGHI, em sua obra “HIERARCHIAE ECLESIASTICAE ASSERTIO”, introduz uma cunha em bloco sólido, compacto, na sentença, absolutamente unânime até então, entre teólogos e canonistas, de que “um Papa, como pessoa privada, podia desviar-se da Fé e cair em heresia.”

Pighi, com zelo amargo, extremado, “sed non secundum scientiam”, (Rm 10, 2), ou seja, zelo não conforme a razão ou indiscreto, quer opor-se à negação rotunda dos protestantes de que o Papa não é infalível, em nenhum caso, afirmando o contrário: “O Romano Pontífice jamais pode cair em heresia, nem no erro, nem sequer como pessoa privada”. E se afirma em sua Tese, de forma brusca, irada. Desata-se em injúrias contra Graciano e maldiz com palavras indecentes aos canonistas.

Mas, como se vê contradito pelo fato evidente da condenação como herege do Papa Honório, pelo VI Concílio Ecumênico, baseando-se em conjecturas arbitrárias, afirma temerariamente que as Atas do Concílio foram falsificadas, assim como a Carta de Honório a Sérgio; que os Padres do Concílio haviam sofrido engano.

Ainda mais: Pigui não teve escrúpulos em criticar caluniosamente as Atas dos Concílios Ecumênicos VI e VII; e, enquanto pôde de sua parte, se esforçou em desacreditar a autoridade e a Fé de ambos os Concílios. (Cf. Melchior Cano, “DE LOCIS THEOLOGICIS, L. SEXTUS, Cap. VIII.)

Melchior Cano considera essa Tese como opinião inovadora na Igreja e a refuta largamente.

Algum leitor perguntará, talvez: “Foi o inimigo que abriu esta porta para o seu assalto à cidadela?” Não! Foi um católico fervoroso defensor da Fé; mas, com seu zelo indiscreto e sob impulsos de seu temperamento fogoso, que cometeu uma imprudência temerária, que o inimigo, em sua astúcia luciferiana, instituiu como a melhor brecha para introduzir-se, sigilosamente, infiltrar-se e alcançar, assim, seu objetivo. Com essa sagacidade que o caracteriza, procurou fazer com que a Tese absurda de Pighi fosse aceita, apesar da refutação de Melchior Cano, por teólogos e canonistas posteriores, como uma “pia opinio”, “piedosa opinião”, que infectou, durante séculos, a estes, criando um estado de opinião, que fez com que se baixasse a guarda; aí vemos que, na expressão do Dr. Disandro, “a temática da Bula, assim como a do Motu Proprio de S. Pio V, a muitos, podia se parecer com uma custódia excessiva, um certo gosto de pontífices autoritários por extremar a significação canônica da verdade, assim como a cautela que, a primeira vista, exibia um certo tremendismo da Fé.”

Assim, pois, aconteceu algo impensável, que constitui como que a essência do MISTERIUM INIQUITATIS, que somente pode ser explicado pela inocência dos filhos da luz: Uma Constituição Apostólica, conscienciosamente elaborada, das chamadas consistoriais – o Consistório de 8 de fevereiro de 1559 rechaçou uma primeira redação, pelo que se teve que redigir uma segunda, que foi subscrita por todos os Cardeais –, ratificada, posteriormente, em todos os seus extremos por São Pio V, chegou a ser considerada como algo anódino que não merecia ter-se em conta nas investigações teológico-canônicas sobre o tema.

Mas, o mal não foi a postura indômita de Pighi; pois, uma vez refutado por Melchior Cano, se lhe tivesse deixado de lado, não teria passado a ser um lamentável episódio na vida da Igreja. O pior é que – e absolutamente incompreensível –, depois de promulgada a Constituição Apostólica de Paulo IV, houve personagens destacados, alguns deles astros de primeira magnitude no firmamento da Teologia Católica que seguiram esta linha de raciocínio. Isto contribuiu, definitivamente, para que o bloco monolítico do consenso, anterior a Pighi, fosse despedaçado, com opiniões contraditórias irreconciliáveis.

Na exposição do que segue – sucinta, por suposto – basear-me-ei, principalmente, em duas obras.

Na obra de XAVIER DA SILVEIRA: La nouvelle Messe de Paul VI: Que penser? Que, na segunda parte, trata, por extenso, o tema da HIPÓTESE TEOLÓGICA DO PAPA HERÉTICO.

E na obra de Homero JOHAS: “A AUTENTICIDADE DA CONDENAÇÃO DE UM PAPA HERÉTICO”. Este autor tem-se aprofundado, como ninguém, no tema da questão do Papa Honório: A CONDENAÇÃO DO PAPA HONÓRIO. (Série de artigos, publicados pela Revista ROMA, nºs 113-115). Outros opúsculos, publicados em português, além do citado mais acima: AS CARTAS DOGMÁTICAS DO PAPA HONÓRIO e uma segunda redação ampliada do mesmo título. As conclusões que chega Dr. JOHAS são irrebatíveis; por isso, os inimigos da verdade procuram abandoná-lo.

O cardeal BARONIO (Cesare) (1538-1607)

Este Cardeal segue, em tudo, a Tese de Pighi. De todos os modos, se este houvesse sido o único personagem destacado que defendeu isso, as conseqüências não haveriam sido tão catastróficas para dissolver o bloco do consenso. Mas, o estremecedor é a astúcia dos filhos deste mundo! Fiquei estupefato e maravilhado, muito mais que o mordomo da parábola ante a sagacidade do administrador infiel, - que um teólogo de primeira linha, seu contemporâneo São Roberto Belarmino (1542-1621) seguisse os passos do Cardeal Baronio, corroborando, ademais, a descabelada hipótese deste, com uma base doutrinal, absolutamente arbitrária: Deus não permitiria jamais que um Papa caísse em heresia. “Com essa doutrina – diz H. JOHAS – o fato sobre Honório seria eliminado a priori”. O que segue é um extrato da exposição do Dr. Johas.

A Elevada posição destes cardeais, em especial, de São Roberto, alimentou a polêmica até o século XX. Mas, o caso é que a opinião de São Roberto Belarmino, neste assunto, se opunha a uma sólida tradição da Igreja, desde muitos séculos, inclusive antes do caso de Honório.

Durante os quatro últimos séculos, a maior parte dos escritos em defesa de Honório (contra o Magistério da Igreja) procede de pessoas que jamais se aproximaram de modo direto e suficiente das fontes históricas. A maior parte se apoiou no prestígio de S. Roberto, que, por acréscimo, ostenta o título de Doutor da Igreja.

Ao falar de três documentos da Igreja, que testemunham a condenação de Honório: LIBER PONTIFICALIS, LIBER DIURNUS ROMANORUM PONTIFICUM e o BREVIARIUM ROMANUM, diz: “Qualquer conjectura oposta... emitida pelos Cardeais romanos, Baronio e Belarmino, é temerária e vai contra as provas documentais da História. Vai também contra as pessoas desses Papas...”

Sua influência alcançou ou chegou até os mesmos Papas. No Breviário citado, no segundo Noturno da festa de São Leão II, é feita referência ao ato deste Santo anatematizando Honório. Pois, bem, o Papa Clemente VIII mandou fazer, em 1602, a renovação Breviário e ele a confiou justamente a estes dois cardeais; justamente aos dois que levantaram suspeitas infundadas sobre a condenação de Honório. Assim, pois, não é de se estranhar que essa referência que se fazia, na festa de São Leão II, desapareceu para sempre.

Por isso, não há nada de estranho que o Dr. Johas, antes de chegar às conclusões de seu estudo, faça certas reprovações a São Roberto Belarmino, no número 3.4, sob a epígrafe: “Erros de São Roberto Belarmino.”

“Neste caso particular – diz – a autoridade de São Roberto Belarmino que, nisto teve muitos seguidores, pode e deve ser contestada. Ele partiu de uma premissa doutrinária e errônea e, como conclusão, negou os fatos históricos, solidamente provados. Essa premissa contrariava a Tradição e o Magistério da Igreja.”

Ele tentou defender uma impecabilidade Papal, no terreno da Fé, tornando-a extensiva à pessoa privada...

De sua falsa premissa, derivaram outros erros. Esta o impulsionou a interpretar os textos objetivos das Cartas de Honório contra seu sentido genuíno, confirmado pelo VI Concílio, por São Leão II e por toda a Tradição posterior até São Roberto Belarmino.

Passou a afirmar, com o Cardeal Baronio, a falsificação de todos os documentos da Igreja, principalmente os da Sede Romana, de Papas e Concílio, Profissões de Fé, Breviário... Tudo para salvar sua doutrina pessoal.

Isto o fez, depois de reconhecer que sua opinião “não é certa; a sentença comum é a oposta.” Defende sua opinião como provável; mas, considera que a sentença da Tradição era menos provável que a sua. Coloca-se acima da Tradição da Igreja, do Magistério ordinário universal fundado na Divina Revelação... Para destruir essa Tradição e o Magistério, tiveram que seguir pelo caminho gratuito de supor a falsificação do Magistério durante largos séculos.

Assim, pois, todo o debate sobre Honório nos últimos quatro séculos teve sua origem nessa doutrina errônea de São Roberto Belarmino. Até aqui o Dr. H. Johas.

Isso não quer dizer, de minha parte, que se tenha que atribuir má fé a São Roberto Belarmino; mas, sim, que se pode afirmar, com certeza, que a sagacidade dos filhos das trevas, enganou, neste caso, a um eminentíssimo filho da luz, para que assim se cumprisse a sentença do Divino Mestre. (Lc 16, 8)

Xavier da Silveira enumera alguns dos seguidores da hipótese de São Roberto Belarmino; em primeiro lugar, seu contemporâneo SUAREZ (1548-1617). Este autor, seguindo a Belarmino, se bem que diz que considera como provável a sentença de que o Papa possa cair em heresia, todavia, lhe parece mais provável e mais piedoso afirmar que o Papa, como pessoa privada, pode cair em erros devidos à ignorância, mas, não à obstinação. Está persuadido de que Deus proverá, mediante a suave ação de Sua providência, para que um Papa não chegue jamais a ser herege. E termina dizendo que devemos considerar como impossível (sublinho) que tenha lugar o que, até então, por especial disposição de Deus, jamais se deu na Igreja.

MATHAEUCCI, teólogo franciscano (+ 1722), afirma rotundamente que a opinião de Suárez constitui uma verdade de Fé, nada menos.

Omitindo autores de classe inferior, nos encontramos com o Cardeal Louis BILLOT (1848-1931). Este teólogo é um defensor, até a morte, dessa opinião. A contraria a admite como hipótese indefensável, em virtude da promessa de Cristo. (Cf. Lc XXII, 32) Baseado em sua interpretação do texto escriturístico, termina com essas palavras: “Logo, a ordem estabelecida por Deus exige absolutamente (sublinho) que, como pessoa privada, o Soberano Pontífice, não pode ser herege, ainda quando houvesse perdido a Fé em seu foro interno. Finalmente, se a hipótese de um Papa caído em heresia notória chegasse a ser realidade, a Igreja estaria envolvida em tal grau de aflições, que pode se dar por judicioso a priori, que Deus não o permitiria jamais.”

Vejamos como é desfeito o nó górdio das objeções. Ele afirma seu próprio juízo contra o dos Papas e dos Concílios: “Honório não foi hereje.” Uma vez afirmado isso, conclui com a maior naturalidade contra o Papa Adriano II, que afirmou que Honório foi acusado de heresia, dizendo que “isso não prova nada.” Contesta a autenticidade do Cânon “Si Papa” de Graciano; e sobre as palavras de Inocêncio III, que admite a possibilidade de que um Papa possa pecar contra a Fé e suas conseqüências imediatas, diz que se trata de uma simples hipérbole oratória.

Nisto, Billot ultrapassa a São Roberto Belarmino e a Suarez. Mostra-se fanático defensor de uma causa com uma debilidade de argumento que causa pavor. Parece mentira que um teólogo de ponta, que, em outros temas teológicos e escriturísticos discorre com agudeza genial, tropece, aqui, tão grosseiramente.

O que dizer de tudo isso? Pighi, o primeiro a formular a teoria da imunidade absoluta do poder de pecar um Papa contra Fé, tem em seu favor a atenuante de havê-la formulado, antes da promulgação da CUM EX APOSTOLATUS OFFICIO; se bem que, dificilmente poderá se esquivar da nota de temeridade por ter-se oposto à opinião comum contrária. Talvez, seu ardente zelo – ainda que discreto – em defesa da Fé o escuse.

Entretanto, não se pode dizer o mesmo de alguns personagens destacados, a partir do Cardeal Baronio. Mas, o caso é que ignoram a Bula. Ao parecer, esta ficou sepultada no esquecimento, a partir da confirmação e ratificação por São Pio V, no espaço de 30 anos. Há que se reconhecer que o astuto inimigo havia dado, firmemente, seu primeiro passo, na direção de seu objetivo.

Teólogos e canonistas, em uma porcentagem altíssima, a desconhecem inteiramente.

Mas, o pior, o mais sintomático, é que há autores que se presumem de especialistas e tratam “exaustivamente” temas em que, necessariamente, tinha que ter lugar, mais ou menos destacado, a Bula de Paulo IV. Vejamos.

Tenho fotocópia de dois artigos da grande obra de Ferraris, PROMTA BIBLIOTHECA, que respondem ao epígrafe de HAERETICIS e HAERETICUS. Neles, encontro citações de documentos de mais de uma dezena de Papas, anteriores e posteriores a Paulo IV; mas, por mais que tenha rastreado, uma ou outra vez, por si me enganava, não encontrei nem uma só citação da Bula. Não quero pensar mal. FERRARIS desconhecia a existência dessa Bula.

Outra obra, na que, necessariamente, tinha que ter seu lugar, de acordo com seu conteúdo e título é, o “ENCHIRIDION SYMBOLORUM, DEFINITIONUM ET DECLARATIONUM DE REBUS FIDEI ET MORUM”, de Henrique DENZINGER. Pois, bem, inacreditavelmente, qualquer texto da CUM EX APOSTOLATUS OFFICIO, brilha por sua absoluta ausência. E isto, em todas suas edições, da primeira até a última. Por isso, M. Gwynne crê que a omissão citada pudesse ter sido tendenciosa. Talvez, em Enrique Denzinger poder-se-ia presumir a ignorância da mesma; mas, isto não pode se presumir dos autores das edições posteriores.

A mesma coisa deve ser dita do DICTIONNAIRE DE THEOLOGIE CATHOLIQUE. Em seu artigo “Deposition et Degradation de Clers”, em sua epígrafe VI, trata da deposição dos Papas. Que lugar mais apropriado para aduzir textos da Bula de Paulo IV se poderia encontrar? Todavia, esses textos não são citados. Desconhecia o autor desse artigo a existência da Bula. Neste caso, duvido. Um especialista deve conhecer toda a bibliografia sobre o tema que domina. Desconhecer um documento importante, não tem perdão (cientificamente falando). Conhecê-lo e não trazê-lo a lume num contexto tão apropriado, por subestimá-lo, é inqualificável.

Por último, vou referir-me à já citada obra de Xavier da Silveira. Este autor que se propõe a estudar “ex professo” e com pretensões de exaustividade, o tema teológico sobre a possibilidade de um Papa hereje e de suas conseqüências, ignora, assim mesmo, absolutamente, a existência da CUM EX APOSTOLATUS OFFICIO; isso, apesar de que a edição francesa (1975), foi publicada quando a Bula já havia vindo à luz – como se costuma dizer – já havia começado o debate.

Pode-se afirmar, pois, que o inimigo havia conseguido plenamente o objetivo de silenciar e preterir este documento, até produzir uma ignorância de sua existência. Todavia, a Bula estava ali, registrada no BULLARIUM ROMANUM, para ser tomada em conta e constituir uma fonte do Direito Canônico, promulgado em 1917...

Paralelamente, o inimigo excogitou outra tática: a de invocar a clemência e misericórdia no castigo dos hereges. Vou-me referir a dois casos muito concretos.

Conta Ludovico Pastor que São Pio V, em seus últimos anos, parecia não ter dado lugar de preferência à repressão da heresia, como antes... Nos idos de 1570, o capuchinho Padre PISTOYA, muito apreciado de São Pio V, lhe havia representado que via, em palpáveis exemplos de cada dia, o zelo do Papa na administração de justiça; mas, que devia considerar-se que, na Sagrada Escritura, por um lugar, em que se chama a Deus justo, havia outros dez (sublinho), em que se colocava de realce sua misericórdia. Até aqui Pastor.

Ao ler esta afirmação – tão insinuante – do Pe Pistoya, não pude menos que exclamar, profundamente indignado: isso é falso! Mas, claro, esses abruptos viscerais, não são convincentes. Por isso, já sossegado, me envolvi na leitura da Bíblia, de ponta a ponta, para descobrir até que ponto era falsa a afirmação de Pistoya.

O resultado dessa inquisição – computando não somente os vocábulos “justiça” e “misericórdia”, e sim o seu conteúdo, em expressões equivalentes, como “o furor de sua ira”, “clemência ou benignidade”, “lento para castigar”, etc., foi impactante – dada a persuasão geral de que a “misericórdia” é mais nomeada que a “justiça”. No entanto, as expressões que se referem a estes atributos divinos estão muito equilibradas, como era de concluir, em certo modo “a priori”; já que ambos os atributos são infinitos.

Mas, há mais. Fazendo, recentemente, uma recontagem dos termos investigados, encontro que o conceito de “justiça” sai ligeiramente em vantagem em comparação ao termo “misericórdia”. E eu que pensava que a exagerada proporção do Padre Capuchinho era uma insinuação luciferina – já sabemos que o diabo é o pai da mentira (Jo 8, 44) – e uma falsidade relativa, pude concluir que se trata de uma falsidade absoluta.

Outro caso de insinuação luciferina é a carta, que G. Bonomelli dirigiu a São Pio X (14-10-1911), em que lhe recomendava moderação em suas decisões contra o Modernismo. Mas, neste caso, Bonomelli recebeu a adequada resposta do Santo, que não cessou seu empenho em erradicar o Modernismo.

Enfim, a “pia opinio” – mas, pode-se fazer teologia com uma “piedosa opinião”, contrária à oposta solidamente fundada em argumentos teológicos, racionais e empíricos reconhecidos? – propagou-se, qual mancha de azeite, por todos os estratos e níveis eclesiásticos.

O teólogo Salaverri (Cf. Theologiae Summa, I, BAC, Madrid, 1962, nº 657) se declara partidário da “pia opinio”. ”Parece-nos – diz – mais piedoso e provável pensar que Deus, com Sua Providência, evitará que um Papa seja hereje”. E acrescenta: “Esta sentença, que defenderam Belarmino e Suarez, recebeu o elogio do Bispo Zinelli, relator da Fé (no Concílio Vaticano I), com essas palavras:

“Confiantes na Providência Sobrenatural, cremos, como muito provável, que nunca acontecerá”.

Dessa mesma presunção geral se valeu o inimigo para ir-se infiltrando no clero, baixo e alto, e tão alto, que esteve a ponto de eclodir na eleição de Rampolla. O inimigo ocultava “no seio e dentro do coração da Igreja.” (Cf. Enc. Pascendi) Isto causou em São Pio X “grandiosa ansiedade e angústia.”

Este santo Pontífice, consciente do mais sacrossanto de seus deveres, prescreveu, também, medidas como remédios eficazes para conter o mal; mas, neste caso, não teve um sucessor, como Paulo IV teve a São Pio V, que persistisse em levar a cabo essas medidas que ele propôs.

Não bastavam encíclicas de impecável ortodoxia e luminosa doutrina. Ele mesmo, São Pio X, fez alusão a seu antecessor Leão XIII, a respeito. Este “procurou opor-se energicamente, por palavra e por obra, a este exército de tão grandes erros, que escondido ou abertamente, nos acomete. Mas, os modernistas... não se intimidam facilmente com tais armas, e afetando sumo respeito e humildade, distorceram de acordo com suas opiniões, as palavras do Pontífice...” Daí que São Pio X insista em uma estrita vigilância, diligência e fortaleza.

Eis aqui o testemunho de vários autores que acusam de negligência aos sucessores de São Pio X.

O Dr. H. M. KELLNER, em umas considerações que publica na revista EINSICHT (II-8, Nov. 1972, p. 41) diz o seguinte: “Deve-se reconhecer que São Pio X foi o último Papa católico verdadeiramente ortodoxo, na era anterior ao Vaticano II. Ele levou a cabo uma encarniçada luta contra a erupção de erros modernistas na Igreja...

Assim mesmo, deve-se constatar que os pontificados de Bento XV, Pio XI, e Pio XII – se bem que estes Papas não tenham feito declarações heterodoxas – caracterizam-se por uma certa quebra do Magistério eclesiástico, que se manifesta na permissividade em relação às tendências destruidoras... Estes Papas não empreenderam, decididamente, nenhuma ação para por um dique à silenciosa revolução... levada a cabo por sedicentes teólogos católicos, tais como T. de Chardin, Ives Congar e J.A. Jungmann. A catequese protestantizante do último foi, inclusive, secundada oficialmente e o iniciador dela foi recompensado com um posto no Vaticano. O progressista Montini foi nomeado, em 1954, Arcebispo de Milão.

G. de NANTES, em “A grande Apostasia”. (CRC nº 97, oct. 1975, pp. 3-12) este autor fala largamente e censura aos três imediatos sucessores de São Pio X. Resumo.

“A partir de Bento XV, o liberalismo retorna. Assim que faleceu São Pio X, a intolerância foi desterrada da Igreja... Chegou a revanche dos oponentes, formados nos tempos do Liberalismo. Bento XV, havia sido durante toda sua vida um diplomático... e, ainda mais, havia sido secretário do Cardeal Rampolla, durante a maior parte de sua carreira. Sabe-se, por outro lado, que São Pio X só o nomeou Arcebispo, com o fim de afastá-lo de Roma e do cardinalato, de má vontade, para não desonrar a Bolonha... Sua eleição favoreceu o retorno das equipes que São Pio X havia mantido constantemente sob controle. Além disso, não se fez questão da tarefa de extirpar Modernismo... pela força.”

De Pio XI diz: “Em razão da democracia, opunha-se a toda contra revolução católica...” Não obstante, reconhece que é homem de doutrina exata e de verdadeira piedade e grande bem-feitor da causa católica por suas encíclicas de considerável altura dogmática. Mas, que importava, já que, por outra parte, trabalhava e contribuía para a doutrina da Igreja.

E sobre Pio XII começa dizendo que sente o que dirá, mas a verdade deve impor-se a todo sentimento, a todo interesse e todo cálculo. Nele se encontram muitas coisas boas.

“Pio XII herdou, também, o espírito de Leão XIII, demasiadamente confiante na liberdade e responsabilidade dos homens; liberal, em uma palavra, não de idéias, mas de governo. Sente repugnância ao molestar o homem com sua doutrina, em neutralizar o traidor, em desmascarar o espião; esforçando-se por crer na probidade de fundo dos homens e em suas promessas.

Ali, onde Pio X ia à caça dos falsos irmãos, Bento XV lhes deixava dormir, Pio XI os tolerava e promovia por política, Pio XII lhes outorgava uma ampla confiança...

Quando ele expunha a verdade – e com que maravilhosa claridade especulativa – cria que todos a haviam compreendido e aceitado.

Somente Pio X unia a claridade da verdade na Fé, à força do Anátema. Somente ele cumpriu todo seu dever. Os outros, fazendo médias, não fizeram nada.

Tudo o que amamos em Pio XII, foi absolutamente inoperante, por sua culpa... Precisamente, por estar aberto às reformas e à investigação... sob seu impulso e sem seu controle, se desenvolveu o Neo-modernismo, que emergiu triunfante, pouco depois de sua morte.”

A respeito da decepção que sofreu ante a traição de Montini, diz: “Decidiu, subitamente, desfazer-se de seu mais próximo e íntimo colaborador. Mas, em lugar de encerrá-lo em uma jaula, ou de ter-lhe servido um honesto castigo – como, talvez haveriam feito alguns de seus predecessores – o nomeou Arcebispo de Milão, uma das mais gloriosas sedes da Cristandade... “Promoveatur ut amoveatur.” Em sua tomada de posse, Pio XII, enfermo, enviou-lhe uma mensagem laudatória tal, que o mundo interpretou como uma designação de seu sucessor à tiara...”

Pe. RICOSSA, em SODALITIUM, nº 23, oct. 1990. “O sucessor, Bento XV condenou, sim, o Modernismo, mas não prosseguiu com a busca dos modernistas. (p.2) A morte de São Pio X, pôs fim à luta antimodernista.”

“Em 1914, haviam mudado muitas coisas. Se em Bérgamo já não estava Tardini, tampouco estavam, em Roma, nem São Pio X, nem seu Secretário de Estado Merry Del Vall; e sim Bento XV e o Cardeal Gasparri. Sem esta mudança decisiva, nem Roncalli... nem Montini, teriam podido chegar até Roma, quase contemporaneamente, para infiltrar-se, pouco a pouco, nos gânglios vitais da Igreja.”

“A eleição de Bento XV... deu uma nova direção à Igreja.” (Citação que ele tomou de Imbart de Tour.)

Gasparri elimina o Sodalitium pianum em 1921. Os inimigos de São Pio X elogiavam a sabedoria de Bento XV, que renunciava ao procedimento iconoclasta do precedente pontificado. Muitas das vítimas do fanatismo foram reabilitadas. Termina dizendo que, com o Conclave de 1914, abriam-se – sem que se soubesse – as portas, fechadas pelo último Papa santo, aos inimigos da Igreja.” (Cf. SODALITIUM, nº 24, dic. 1990)

Coloco a responsabilidade de todas estas afirmações sobre os autores das mesmas. Mas, não há dúvida de que o resultado a que se chegou, por esquecer, preterir ou subestimar a Constituição de Paulo IV, não podia ser mais catastrófico.

Como comentário, acrescentarei algumas frases, espigadas, do Dr. Disandro. Assim, “aquelas previsões do passado (Bula) – obstruídas e negadas (sic) pela mesma autoridade que tendiam a defender – se vêem cumpridas na Igreja de hoje, governada por um falso Pontífice...”

“O documento de Paulo IV comporta, inevitavelmente, uma doutrina, que se negam a enxergar, tanto os progressistas (para os quais a autoridade carece de irradiação sacra) como para os “tradicionalistas” (para os quais a crise só se explica à margem da autoridade).”

O esquecimento e preterição da Bula e, posteriormente, do Canon 188, 4, facilitou “que se elevassem às mais altas dignidades canônicas e que, inclusive, se orientassem a possuir o Pontificado; conclaves que elegem maçons ou coroam modernistas notórios; presumidos Papas, que, no uso de sua autoridade, combatem e relegam a Tradição, obscurecem o horizonte espiritual da Igreja. Tudo isto bastaria para conferir renovado interesse a estes documentos.”

“Como pôde desenvolver-se e instaurar-se o modernismo bíblico de Bea, depois das cautelas, reconvenções e condenações de São Pio X; infectar os pontificados de Pio XI e Pio XII e emergir triunfante com João XXIII?”

Tudo isso é conseqüência da extrema candidez dos católicos, em todos os níveis, como já foi dito. A tese gratuita de que Deus não podia permitir que um heterodoxo escalasse até o cimo (apesar da máxima tribulação vaticinada em Mateus 24) fez com que a Hierarquia e os católicos, em geral, dormissem tranqüilos numa falsa segurança, que lhes impedia e impede de ver a realidade.

Em 1903, esteve a ponto, se não fosse pelo veto da Áustria, de ser eleito Papa o Cardeal maçom Rampolla. Parece mentira, que, como disse Davidoglou (La VOIE, XIX, 1990, p. 35) “os austríacos estavam a par da realidade.” Como pôde suceder que os do Vaticano estivessem tão ignorantes do que acontecia em seu próprio meio?

“Inclusive – disse – o bom de São Pio X não querer saber nada de Maçonaria, e, quando, à morte de Rampolla, mostram a ele os documentos, que provavam a pertença à mesma deste, exclamou: “Queimai tudo isso!”

Isso é que o mesmo São Pio X havia constatado na PASCENDI – citada anteriormente – que os inimigos se encontravam ocultos no seio e no coração da Igreja.

Uma guerra defensiva, jamais poderá ser ganha; quanto mais em uma guerra levada a cabo com uma defensiva lânguida e confiante em que o inimigo não chegará a certos extremos; sendo assim, o inimigo ataca agressivamente por todos os meios ao seu alcance, sem a menor trégua. A vigilância deve ser perpétua.


 
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